Valor Econômico, n.5214, 24/03/2021. Política, p.A9/A10

 

Carmén Lúcia muda voto e Turma do STF declara parcialidade de Moro

Isadora Peron

Murillo Camarotto

24/03/2021

 

 

Ministro indicado por Bolsonaro deu voto contra a suspeição de ex-juiz

Em uma reviravolta, a ministra Cármen Lúcia proferiu ontem o voto decisivo, na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), para declarar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá. O julgamento terminou em 3 a 2, e significa uma das maiores derrotas da história da Operação Lava-Jato.

Inicialmente, a expectativa era que o ministro Kassio Nunes Marques se juntasse a Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, mas o novo integrante da Corte, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo, ficou ao lado do relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, e votou contra a suspeição de Moro.

Derrotado, Fachin admitiu ontem que o conteúdo das mensagens interceptadas por “hackers”, que foram presos pela Operação Spoofing, é grave e que poderia resultar até mesmo na anulação integral da Lava-Jato. Ele, no entanto, defendeu que antes é preciso haver um debate em torno do material que mostra a proximidade entre Moro e os procuradores da força-tarefa de Curitiba.

“A amizade do juiz com a acusação pode ter o condão de anular todos os processos em que o mesmo fato ocorreu, ou seja, todos os processos julgados pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Não basta dizer que esse é apenas um caso específico, é preciso ir além e reconhecer que esta decisão poderá implicar a anulação de todos os processos julgados pelo ex-magistrado”, disse.

Para ele, “os fatos realmente são graves, e se forem verdadeiros, a solução pode ser e quiçá deva ser a nulidade”, O ministro, no entanto, disse que não é possível “admitir que isso seja feito sem que as dúvidas sobre a integridade do material sejam examinadas, sem que a sua contextualização seja profundamente aferida e sem que haja um mínimo de instrução competente”.

Ontem, ao proferir um novo voto, Cármen Lúcia disse que, embora em 2018, quando o julgamento começou, ela tenha se manifestado contra o conhecimento do habeas corpus, ela sempre esteve “aberta” a mudar de posição, especialmente diante de fatos novos.

A ministra defendeu ainda que todos têm o direito de um “julgamento justo”. Ao expressar a sua mudança de posição, ela fez questão de ressaltar que o seu voto ficava restrito à condenação de Lula no caso do tríplex, e não tinha impacto nos demais casos da operação. “Não acho que o procedimento se estenda a quem quer que seja, que a imparcialidade se estenda a quem quer que seja ou atinja outros procedimentos”, disse.

Ela, no entanto, defendeu que o combate à corrupção no país não pode parar. “Não estou emitindo juízo no voto sobre o combate à corrupção, que não pode de jeito nenhum parar”, disse.

Nunes Marques, por sua vez, fez uma dura crítica ao uso das mensagens apreendidas pela Operação Spoofing, obtidas por hackers que invadiram os celulares do ex-juiz e de procuradores..

Para o ministro, tratam-se de provas ilícitas. “Se o ‘hackeamento’ fosse tolerado como meio para obtenção de provas, ainda para defender-se, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade, de seus bens e de sua liberdade, tudo seria permitido”, disse.

Ele defendeu que os arquivos obtidos pelos hackers são “absolutamente inaceitáveis” como provas em um processo. “Entender-se de forma diversas, que resultados de tais crimes seriam utilizáveis, seria uma forma transversa de legalizar a atividade ‘hacker’ no Brasil.”

O ministro afirmou que “a sociedade viveria processo de desassossego semelhante às piores ditaduras” se isso acontecesse. “Não é isso que deve prevalecer nas sociedades democráticas. A forma importa na democracia tanto quanto o conteúdo.”

Nunes Marques também colocou em xeque a veracidade das mensagens divulgadas pela imprensa. Por fim, ele fez uma crítica à classificação de juízes como “punitivistas” e “garantistas”. “Não há mais espaço para elucubrações fantasiosas sobre juízes antilavajatistas ou garantistas. Todo o magistrado tem a obrigação de ser garantista”, disse.

O ministro devolveu o processo para a pauta ontem, após pedir vista (mais tempo para análise) no dia 9. Na época, o pedido foi interpretado como uma “vista política”, não técnica, já que tanto Lula quanto Moro são considerados potenciais adversários de Bolsonaro nas eleições de 2022.

Lula voltou ao jogo político após Fachin decidir anular todas as condenações impostas ao petista pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Com a decisão, o ex-presidente recuperou seus direitos políticos e, hoje, está apto para participar do processo eleitoral.

O voto do novo ministro foi rebatido por Gilmar e Lewandowski. Ambos defenderam que não consideraram as mensagens apreendidas pela Spoofing para formar a convicção de que Moro atuou com parcialidade.

“É muito fácil não conhecer de um habeas corpus. Atrás, muitas vezes, da técnica de não conhecimento de habeas corpus, se esconde um covarde. E Rui [Barbosa] falava: o bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde”, disse Gilmar.

O ministro também defendeu a veracidade das mensagens “hackeadas” e disse que “não houve ninguém até agora capaz de dizer que houve um dado falso nessas revelações”. “Ou o hacker é um ficcionista ou estamos diante de um grande escândalo. A desmoralização da Justiça já ocorreu. O tribunal de Curitiba é conhecido mundialmente como um tribunal de exceção”, disse.

Ele continuou: “Algum dos senhores aqui compraria um carro do Moro, algum dos senhores seria capaz de comprar um carro do [procurador Deltan] Dallagnol? São pessoas de confiança?”.

O ministro também afirmou que o voto do colega não era garantista “nem aqui, nem no Piauí”, em uma referência ao Estado natal de Nunes Marques.

Após as falas, o novo integrante do STF disse que iria responder com “silêncio” as críticas. “Eu falo pouco - não gosto muito da minha voz -, mas o que eu quero dizer é que não vou fazer réplicas, tréplicas. Expus minhas ideias com solar clareza, e esse silêncio é em homenagem e respeito aos votos divergentes.”

O ministro também afirmou que não temia ninguém neste “plano”. “Quem me conhece sabe que eu não me inibo com nada e que eu não temo ninguém neste plano, eu sou temente somente a Deus. Para os que não me conhecem, ainda tem um pouco mais de 26 anos para conhecer”, disse, em relação ao tempo que terá como integrante da Corte.

Nunes Marques rebateu ainda o que Gilmar falou sobre o Piauí. “Quando Vossa Excelência diz que isso não é garantismo nem aqui, nem no Piauí, pode ser interpretado, além de um menoscabo à opinião de um colega, como uma forma de menosprezar um Estado pequeno. Eu sei que o senhor não teve essa intenção, mas eu queria fazer esse registro e apresentar escusa se eventualmente ofendi a forma de pensar dos senhores.”

Apesar do resultado de ontem, o plenário do STF ainda pode ter a palavra final sobre o caso. O colegiado, formado pelos 11 ministros, não deve discutir o mérito do habeas corpus, mas sim uma questão processual. Ontem Fachin voltou a defender que, no seu entendimento, o recurso apresentado pela defesa de Lula havia perdido o objeto.

Quando o ministro decidiu anular todas as condenações impostas ao petista pela Lava-Jato, ele apontou que o pedido sobre a parcialidade de Moro não deveria mais ser julgado pela Corte.

A decisão de Fachin ainda será submetida a plenário. O mais provável é que isso ocorra no início de abril. Quando o tema for debatido, os ministros terão que enfrentar a discussão sobre a validade do julgamento da Segunda Turma.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Advogados não veem risco de anulação de toda a Lava-Jato

André Guilherme Vieira

Bárbara Pomba

24/03/2021

 

 

Para juristas, eventual nulidade absoluta alertada por Fachin tem chances remotas de ocorrer

Apesar de o ministro Edson Fachin ter alertado para eventual risco de anulação total da Operação Lava-Jato com a decisão tomada ontem pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o entendimento firmado por 3 votos a 2 deve ficar restrito ao processo do tríplex do Guarujá que envolve o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, segundo advogados entrevistados pelo Valor.

A Turma entendeu que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial ao julgar o petista no caso do apartamento, condenando-o pelo suposto recebimento de propina na forma do imóvel, paga pela empreiteira OAS, segundo a Lava-Jato.

A decisão, no entanto, não impede que outros réus da Lava-Jato de Curitiba pleiteiem a suspeição de Moro com argumentação análoga à apresentada pela defesa de Lula. Um magistrado é considerado “impedido” ou “suspeito” para julgar um acusado quando se reconhece que ele tomou o lado de uma das partes, violando o preceito jurídico de que o julgador deve ser neutro para decidir de forma justa.

“Importante pontuar que a suspeição diz respeito a uma relação que vincula o julgador e uma das partes”, afirma a ex-procuradora e desembargadora federal aposentada Cecilia Mello.

A advogada ressalta que as provas obtidas na investigação sobre “hackers” que tiveram acesso a conversas de Moro e procuradores da Lava-Jato, obtidas de seus celulares e que constam dos autos julgados pelo STF, não foram usadas para acusar Moro.

“Essa interpretação não tem nenhuma divergência na doutrina e na jurisprudência e a prova obtida por meio ilícito não pode ser utilizada pela acusação, mas seu uso pela defesa sofre amenizações”, diz a advogada. “É nesse sentido que tais provas foram consideradas pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski”, conclui Cecilia Mello.

Para Rubens Glezer, professor de direito constitucional da FGV Direito SP e coordenador do Supremo em Pauta, os ministros da Segunda Turma tiveram o cuidado de não declarar a suspeição de Moro com base nas mensagens “hackeadas”.

“Nenhum deles quer ser acusado de fundamentar a suspeição em provas ilegais. A menção a essas mensagens é uma forma de fazer o posicionamento político sem gerar complicações jurídicas para a fundamentação das decisões”, afirma.

“A questão central foi embasada pela conduta de Moro específica para as interceptações telefônicas de advogados que atuaram na defesa do Lula”, diz o criminalista Pierpaolo Cruz Bottini.

Segundo ele, outros réus da Lava-Jato julgados por Moro, que também foi ministro de Jair Bolsonaro, poderão suscitar a suspeição do ex-magistrado que tutelava a Lava-Jato do Paraná.

“Mas sempre individualmente, não é algo com efeito automático. Para estender a suspeição a outros processos será preciso demonstrar, caso a caso, que houve decisões parciais do ex-juiz Moro”, afirma Bottini

Advogado de Fernando Bittar, um dos réus na ação do sítio de Atibaia cuja posse foi atribuída a Lula pela Lava-Jato, Alberto Toron afirma que vai estudar se a decisão de ontem pode ser aproveitada para a tese de defesa de seu cliente.

Na avaliação do criminalista, a fala do ministro Fachin de que a decisão de suspeição de Moro pode ser usada retoricamente para outros casos e gerar um efeito cascata para a Lava-Jato, é o argumento de quem quer minar o reconhecimento da suspeição no caso concreto.

“Isso não seria justiça, mas um simulacro de justiça”, diz Toron.

Já a advogada Fernanda Tórtima destaca que a decisão da Turma do STF mantém os direitos políticos de Lula.

“A consequência do julgamento de ontem recai apenas sobre o processo do tríplex do Guarujá. Como Lula não está condenado por nenhum outro tribunal em segunda instância, o presidente esta elegível neste momento”.

Para o advogado mestre em processo penal pela PUC de São Paulo, Daniel Bialski, a decisão da Segunda Turma deu a largada para que outros condenados por Moro busquem a anulação de seus processos penais.

“Certamente muitos réus tentarão requerer a extensão não desse julgado, porque não se aplica, mas a extensão do raciocínio e do precedente para buscar a anulação de seus processos. Mas caberá aos tribunais e ao STF dizer se é caso de anulação ou não”.

Advogado e professor de processo penal, Rodrigo Faucz Pereira e Silva considera “extremamente improvável” que uma anulação completa da Operação Lava-Jato decorra da decisão tomada pela Turma do Supremo.

“É uma possibilidade que eu considero remotíssima. Até porque o conteúdo das conversas de Moro com os procuradores, se forem consideradas favoravelmente à defesa dos demais réus, isso ainda terá de ser judicialmente enfrentado. Então a anulação pode acontecer individualmente, caso a caso, envolvendo todos os elementos que possam configurar e embasar uma parcialidade do ex-juiz Moro”.

Davi Tangerino, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é cético sobre o potencial da decisão se estender para outros réus.

“Vai ser muito difícil provar a suspeição de forma tão eloquente como a defesa do Lula fez”.

Segundo ele, ficou em aberto a discussão sobre a validade das mensagens “hackeadas” entre procuradores da Lava-Jato e o ex-juiz Moro. “O STF não entrou nesse mérito, mas esse dia chegará”, prevê.

 

 

Fica pendente agora a definição do Supremo sobre a competência da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba para julgar quatro ações penais a que o ex--presidente Lula responde. No dia 8 de março, o ministro Edson Fachin, em uma decisão individual, anulou os processos ao se render ao entendimento majoritário da Corte de que denúncias sem relação direta com o caso de corrupção na Petrobras deveriam ser retiradas da alçada da Justiça de Curitiba.

 

Nessa mesma decisão, Fachin declarou que a suspeição de Sergio Moro teria perdido o objeto, ou seja, não teria mais motivo para ser analisada em razão da nulidade conferida ao processos de Lula.

Para um ex-ministro do Supremo, ainda haveria uma brecha para o plenário do Supremo reavaliar a decisão da Segunda Turma sobre o tema da suspeição. Ao confirmar a decisão monocrática de Fachin, o plenário da Corte pode avaliar se, de fato, houve a perda de objeto da suspeição. Segundo a fonte ouvida pela reportagem, o STF ainda pode salvar a Operação Lava-Jato.

Procurado, Moro não se manifestou até o fechamento desta edição.