Valor Econômico, n.5212, 22/03/2021. Brasil, p.A4

 

Mudança climática cria novos dilemas no sistema elétrico

Daniel Rittner

22/03/2021

 

 

Padrão hidrológico se altera, reservatórios não enchem mais, tarifas sobem e surge a ‘espiral da morte’

A intensificação das mudanças climáticas é apontada como principal suspeita de um fenômeno com impacto direto nas operações do setor elétrico e nas contas de luz: os reservatórios de grandes usinas não enchem mais - mesmo com a atividade econômica em estado de letargia e a demanda por energia sem aumento expressivo nos últimos anos.

Entre 2016 e 2020, a afluência que chega às represas de hidrelétricas como reflexo das chuvas ficou muito abaixo da média registrada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em um período de quase nove décadas: 85,6% no Sudeste/Centro-Oeste (considerada a principal caixa d’água do país), 49,3% no Nordeste, 88,4% no Sul e 76,2% no Norte.

O levantamento, feito pelo Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), demonstra que o volume nacional de chuvas superou a média histórica em oito anos desde o começo do século. Na última década, a hidrologia ficou acima da média em só duas ocasiões. Nos últimos cinco anos, nenhuma vez.

Para o economista Adriano Pires, diretor do CBIE, a dificuldade sistêmica de recuperação dos reservatórios tem provocado uma nova realidade no setor: em vez de racionamento físico, com necessidade de corte de carga, o país passou a viver em um contínuo “racionamento econômico”.

“É notório que a velocidade de recomposição de reservatórios se alterou ao longo do período, não só pelo efeito de menor volume de chuvas, mas também em decorrência do gradual e consistente aumento de temperaturas em razão do aquecimento global, que por sua vez interfere nos dados temporais de evaporação”, diz Pires.

“Nossa concepção de racionamento econômico leva em conta um peso excessivo de despacho fora da ordem de mérito, não previsto pelo modelo computacional, de térmicas com CVU [custo variável] de até R$ 1.700 por megawatt-hora para preservar volumes mínimos dos reservatórios, com uma consequente oneração excessiva de tarifas de eletricidade, que poderia ser evitada mediante planejamento.”

Essas usinas, que analistas do setor afirmam ironicamente ser movidas a “Chanel nº 5” pelo altíssimo custo do óleo combustível, têm valor do megawatt-hora de 12 a 14 vezes superior ao de hidrelétricas.

O reflexo disso é percebido no bolso. Desde 2013, logo após a polêmica medida provisória (MP 579) editada pela então presidente Dilma Rousseff para reduzir os preços da energia, a tarifa média no mercado regulado subiu 105,2%. É mais que o dobro da inflação acumulada de 47,7% no período, calcula o CBIE.

“Todos os anos é a mesma histórica. Chega julho, agosto ou setembro e as térmicas mais caras são acionadas. Não temos tido problemas mais graves unicamente por falta de crescimento da economia. O setor elétrico precisa de mudanças”, afirma Pires.

Segundo ele, a solução passa por contratar termelétricas movidas a gás natural (menos caras e menos poluentes frente a opções como óleo combustível e carvão mineral) para operar “na base” do sistema, ou seja, de forma praticamente ininterrupta.

Pires avalia que ter em torno de 8 mil MW - o equivalente à geração de Itaipu - em novas térmicas a gás seria suficiente. Neste ano, com reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste no patamar mais baixo desde 2015, quase todas as térmicas do país estão sendo acionadas mesmo em plena temporada de chuvas. Além disso, o Brasil tem importado energia dos vizinhos.

Luiz Eduardo Barata, ex-diretor-geral do ONS, concorda com a percepção de que o regime de chuvas mudou para valer. “Não sou especialista em mudanças climáticas, mas estou convencido de que é isso. Ao não cuidarmos da Amazônia e do Cerrado, estamos perpetuando o problema. Não é apenas um período crítico, que passará.”

Barata diverge, no entanto, quanto à forma de lidar com esse novo desafio e afirma que não compartilha a visão dos “adoradores de térmicas”. Para ele, o caminho é apostar mais em um “programa intensivo de fontes renováveis”, como parques eólicos e solares, que podem representar até 50% da matriz elétrica - hoje a participação está em torno de 12%.

Como essas fontes são intermitentes, devem ter o complemento das térmicas a gás, mas não para operar na base. As hidrelétricas deverão funcionar como reguladoras do sistema, provendo mais energia quando não há vento e ou sol, mas recebendo um alívio como carros-chefe da operação. “O gás é um combustível de transição energética, com menos emissões do que o óleo e o carvão, mas o mundo não vai por esse caminho”, diz Barata.

A pressão sobre as contas de luz continua em 2021. A TR Soluções, empresa de tecnologia aplicada ao setor elétrico, projeta reajuste médio de 17,1% nas tarifas residenciais. A estimativa considera 53 concessionárias de distribuição do país, além de sete permissionárias, das quais só três - Light (RJ), Enel Rio e Energia Borborema (PB) - já tiveram processos homologados.

Em auditoria recente, o Tribunal de Contas da União (TCU) chamou a atenção para uma “alocação desequilibrada” entre consumidores do mercado cativos (principalmente residências e pequenos comércios) e livres (indústria e grande comércio).

Entre 2015 e 2019, segundo o órgão de controle, foram gastos R$ 47 bilhões com a receita fixa dos geradores termelétricas, que recebem uma remuneração independentemente de serem ou não acionados, a fim de garantir segurança ao sistema. Esse custo é totalmente arcado por consumidores cativos - embora o mercado livre já corresponda a 30% da demanda total.

 

 

Para escapar, mais e mais empresas tornam-se consumidores livres. Enquanto isso, pequenos investidores instalam painéis fotovoltaicos para fugir das contas de luz das distribuidoras, por meio de um sistema de compensação. Um custo crescente vai ficando em cima de cada vez menos consumidores. É um círculo que a auditoria do TCU chama de “espiral da morte”.

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Aneel promete ao TCU rever incentivo à geração solar

Daniel Rittner

22/03/2021

 

 

 

Agência diz que mudança será decidida até 30 de junho

Cobrada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em processo que aponta bilhões de reais em subsídios cruzados na geração de energia solar, por meio de painéis instalados nos telhados de residências ou em “condomínios fotovoltaicos” longe dos centros urbanos, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se comprometeu com o órgão de controle a revisar os incentivos atuais e cravou uma data para decidir sobre a mudança: até 30 de junho.

Na primeira tentativa de revisão das normas, entre o fim de 2019 e o início de 2020, o presidente Jair Bolsonaro enquadrou a Aneel e barrou o avanço nas discussões. Na ocasião, ele encampou o discurso - promovido por empresários do segmento e tecnicamente errado - de que estava sendo criada uma “taxação do sol”. “Sol, fique tranquilo, não serás taxado”, afirmou o presidente a apoiadores, na entrada do Palácio da Alvorada, apontando o céu.

Em novembro do ano passado, o TCU voltou ao tema e fez uma determinação à Aneel: apresentar, em até 90 dias, um “plano de ação” para retirar a “diferenciação tarifária” entre consumidores que geram sua própria energia por meio de painéis solares e os demais consumidores do sistema.

O diretor-geral da agência reguladora, André Pepitone, respondeu no limite do prazo. Em ofício reservado ao tribunal, ao qual o Valor teve acesso, Pepitone traçou um calendário: até 31 de março para a preparação de minuta de resolução com novas regras e até 30 de junho para deliberação final. A partir de julho, valeria o novo regulamento, com prazos de transição e de implementação. O diretor Efrain Cruz ficará encarregado da relatoria.

Com o ofício ao TCU, o tribunal de contas poderá monitorar se esse cronograma apresentado vai realmente se efetivar. E, eventualmente, sancionar as autoridades da Aneel em caso de descumprimento. Em setembro, ao participar da inauguração de uma usina solar na Paraíba, Bolsonaro voltou ao assunto e criticou o “fantasma da taxação do sol”: “Conversando com o ministro [Bento Albuquerque] e com o presidente da Aneel chegou-se à conclusão de que até 2022, enquanto estivermos no governo, não será colocada em prática”.

A proposta que vinha sendo debatida pela agência e que foi travada por Bolsonaro buscava reformular a Resolução Normativa 482, de 2012, que trata dos subsídios à geração distribuída. O objetivo era que micro e minigeradores passassem a pagar pelo uso da rede elétrica de distribuição. Pelas normas atuais, eles são isentos da tarifa e de encargos setoriais rateados por todo o conjunto de consumidores.

Um projeto de lei na Câmara, relatado pelo deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), prolonga a isenção dada aos investidores em energia solar e está pronto para votação em plenário. Um conjunto de associações do setor, além do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), divulgou manifesto contra a proposta. A Abradee (distribuidoras de energia) estimou os custos totais dos subsídios em R$ 120 bilhões até 2030.

No ofício ao TCU, Pepitone considera que seria “indesejável” a definição de uma política pública “em momento posterior à regulamentação da Aneel”. “Trata-se um cenário que pode afetar o mercado de geração distribuída, inibir investimentos e descontinuar setores que compõem a cadeia produtiva.”

No sistema de compensação de energia atual - conhecido como “net metering” no jargão do setor -, os consumidores podem produzir sua própria eletricidade com os painéis fotovoltaicos e injetar o excedente na rede das distribuidoras. Com isso, ganha créditos que são utilizáveis em até 60 meses. Estimativas citadas pelo TCU indicam que o retorno dos investimentos está em 4,5 anos.

Na década passada, calcula-se que o custo dos painéis tenha diminuído cerca de 75%. Com isso, os incentivos originais não seriam necessários na mesma proporção. Como os donos de painéis continuam conectados às redes e precisam puxar energia do sistema, por exemplo ao acender suas luzes à noite, esses custos dos quais são isentos acabam sendo divididos entre os demais.

Ao falar sobre a “taxação do sol”, a ministra Ana Arraes, relatora do processo no TCU, comentou: “Esse slogan se alinha bem ao espírito do nosso tempo (‘zeitgeist’), em que as ‘fake news’ e afirmações falsas movidas por interesses escusos se propagam pelas redes sociais com velocidade muito maior que o conhecimento científico”.

 

 

O Ministério da Economia calcula que os incentivos custarão R$ 34 bilhões, entre 2020 e 2035, para quem não entra no sistema de compensação. Nos últimos anos, dentro das regras vigentes, proliferaram os “condomínios solares” instalados fora dos centros urbanos. Eles enviam a energia para empresas (redes de lojas, farmácias, bancos) que se beneficiam do sistema de créditos mesmo sem terem os painéis em seus próprios edifícios. Essa modalidade é chamada de geração remota. Para a Economia, seria mais eficaz ampliar a geração solar por meio de leilões do mercado regulado.