Valor Econômico, n.5207 , 15/03/2021. Política, p.A6

 

Com ativismo virtual, empresários pressinam contra Bolsonaro

Maria Cristina Fernandes

15/03/2021

 

Grupos de whatsapp que hoje compartilham vídeos contra Bolsonaro eram os mesmos que, até o ano passado, divulgavam mensagens contra o Supremo

A manifestação, ao longo do domingo, por intervenção militar em defesa do presidente da República, marcou também o completo divórcio entre o bolsonarismo raiz e seus eleitores na elite econômica do país. Até o ano passado, ainda circulavam, em grupos de WhatsApp de investidores, empresários e executivos do mercado financeiro, a grande maioria ex-eleitores do presidente Jair Bolsonaro, mensagens críticas ao Supremo e ao Congresso. A partir do primeiro fim de semana de março, porém, esses mesmos grupos passaram a compartilhar conteúdos que vão da crítica contundente ao impeachment do presidente.

Pelo menos dois deles, apropriados pelos compartilhamentos como material endógeno aos grupos, foram produzidos por uma dupla de comunicadores com o objetivo pré-determinado de mobilizar bolsonaristas arrependidos nesse extrato social.

A inquietação, crescente desde a intervenção na Petrobras, no fim de fevereiro, transbordou com duas frases do presidente “Tem idiota que diz ‘ vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe” (4/3) e “chega de frescura e mimimi” (5/3). A indignação fez do Paraguai, onde milhões foram às ruas protestar contra o presidente Mario Abdo Benítez por má gestão da pandemia, um “benchmark”, para ficar no dialeto em questão. Apesar da indignação, havia a convicção de que a escala de mortes impede uma mobilização popular capaz de pressionar o Congresso da mesma forma. Uma saída seria barulho nas redes sociais.

As duas declarações coincidiram com o início da circulação de dois vídeos. O primeiro, postado no dia 4, o #custobolsonaro (abaixo) é uma peça de 1’27”, com abordagem destinada a mobilizar esses grupos. Com recortes de jornais, do Brasil e do exterior, e a locução em off: “Você já sabe o que é o custo Bolsonaro? No fundo, você já sabe. Ele está na alta do preço da gasolina e está na queda das ações da Petrobras. É a volta da forme do povo e do medo do empresário. O custo Bolsonaro é o caos no país e o vexame no exterior. É ter a moeda que mais desvalorizou no mundo e a pior gestão da pandemia. O custo Bolsonaro é a fuga dos investidores internacionais. E não dá para culpá-los. Pense bem, você confiaria seu dinheiro a essa equipe? Custo Bolsonaro é ter Damares falando na ONU e Guedes fora da OCDE. É perder a confiança da China por causa do filho do presidente, perder a confiança dos EUA por causa de mentiras do Whatsapp. É ver a Amazônia pegar fogo junto com nossos acordos comerciais. É fechar as portas para a União Europeia e virar as costas para o Mercosul. Custo Bolsonaro é perder a Ford para a Argentina. E ver o Amazonas depender do oxigênio da Venezuela. Custo Bolsonaro é ver o Queiroz mais protegido que a indústria nacional. É o prejuízo de esperar por vacina e pagar por Cloroquina. O Brasil é cheio de recursos, talentos e oportunidades, mas com o custo Bolsonaro a conta não fecha”.

“Queríamos falar para o investidor, por isso fizemos uma comunicação dirigida”, diz um de seus idealizadores, que prefere não se identificar. Disparado para grupos de Whatsapp de investidores e empresários, não custou a chegar às redes sociais abertas, como You Tube, Facebook e Twitter. As especulações sobre sua autoria iam do fundador do 3G Capital, Jorge Paulo Lehmann aos grupos de renovação política. Toda aquela mobilização, porém, havia partido de dois jovens - um fez o texto e o outro editou a imagem - a custo quase zero.

Naquele dia, o IBGE anunciou a queda de 4,1% no PIB, a pior queda desde a década de 1980, comemorada por Bolsonaro como “poderia ter sido pior”. "Na impossibilidade de nos encontrarmos, a divulgação desses vídeos ajudou a catalizar reação", conta um investidor que é ativo compartilhador. Só uma pressão popular forte seria capaz de vencer as resistências do Congresso ao vice, Hamilton Mourão, não apenas por sua condição de general como pelas incertezas em relação aos arranjos de poder que levam o Congresso a comandar o Orçamento.

Liberação da candidatura de Lula desnorteou, mas não arrefeceu indisposição contra o presidente

 

 

No dia seguinte, junto com a “frescura e o mimimi”, começou a circular o segundo vídeo da dupla (abaixo). Com uma duração de 1:14, tinha uma abordagem mais voltada para os empregados dos grupos para os quais havia seguido o primeiro e uma pegada de vendedor de porta de loja: “Todo dia é dia de preço alto no Brasil do Bolsonaro. Batata normal de R$ 2 em 2018 para R$ 7 em 2021. Carne de segunda agora R$ 45 o kilo. Não é caro. É Bolsocaro. Arroz tão caro que é melhor trocar por macarrão. E a gasolina? Era R$ 2,50 em 2018, hoje você vai pagar R$ 5,80. E o bujão de gás? Já está R$ 100. Isso mesmo, R$ 100 o gás de cozinha. É Bolsocaro demais. Taoquei? Dólar? Tá quase R$ 6. Auxílio emergencial? Era R$ 600 agora apenas três parcelinhas de R$ 250. Cheques na conta da Michelle? Pelo menos R$ 89 mil. E a mansão do Flávio? Por R$ 6 milhões. É melhor jair-se-endividando. Aproveite nosso estoque cheio de cloroquina. Vacina contra a Covid? Essa quase não tem. Supererrado Bolsocaro. Metendo a mão no seu bolso e custando caro, muito caro”.

Ecos dessa mobilização chegaram aos ouvidos do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e do ministro da Economia, Paulo Guedes, que, de pronto, apareceram na conferência virtual da segunda-feira com o CEO da Pfizer, Albert Bourla, ao lado do presidente da República. Ao ver Guedes anunciando o adiantamento de 15 milhões de doses da vacina depois daquela reunião, uma liderança parlamentar lembrou-se da articulação do dono de uma grande rede de hospitais que, em janeiro, o procurou para tentar negociar a liberação da compra de vacinas em coordenação com os prefeitos dos municípios em que tem unidades hospitalares.

A articulação não foi pra frente porque a Moderna, laboratório procurado, só se comprometeu com entregas em maio. Este parlamentar teve certeza de que se tratava de jogo de cena de Guedes. Não haveria aquela disponibilidade da Pfizer para pronta-entrega. A empresa não comenta, mas os fatos subsequentes confirmariam sua percepção. A estimativa de entrega de vacinas pelo Ministério da Saúde, até o fim de março, caiu de 48,9 milhões para a metade, num intervalo de 18 dias.

Os grupos de whatsapp de investidores e empresários já tinham informação, àquela altura, de que os cronogramas de entrega de vacinas do governo não se sustentavam. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também transpareceu a preocupação ao divulgar, em redes sociais, a conversa com o embaixador da China no Brasil, Yan Wanming, em que fez um apelo dramático por vacinas: “Me dirijo ao governo chinês, nesse momento de grande angústia para nós brasileiros, para que nossos parceiros chineses tenham um olhar amigo, um olhar humano, um olhar solidário, que nos ajudem a superar esse momento de muita dificuldade na pandemia”.

Àquela altura, já circulava um terceiro vídeo nos grupos de investidores em que as declarações de Bolsonaro de afronta ao isolamento eram contrastadas com a de seis dirigentes mundiais: Giuseppe Conte (Itália), Emmanuel Macron (França), Alberto Fernandez (Argentina), Angela Merkel (Alemanha), Cyril Ramaphosa (África do Sul), Boris Johnson (Reino Unido), Narendra Modi (India), Jacinda Ardern (Nova Zelândia) e Vladimir Putin (Rússia).

A frustração crescia junto com a certeza de que, no governo, não há ninguém capaz de operar um “gabinete de crise” para um esforço emergencial. O ministro Eduardo Pazuello, que discutiu a montagem de um grupo do gênero com os governadores, está com a cabeça a prêmio porque o presidente precisa tirar os cadáveres de suas costas. A ministra considerada mais eficiente do governo, Teresa Cristina, da Agricultura, está imobilizada pela vigilância sobre o secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, guardião dos interesses de desmatadores.

O Secretário de Assuntos Estratégicos, Flávio Rocha, forma com o ministro das Comunicações, Fabio Faria, a dupla que tenta dar agilidade na reação presidencial à crise das vacinas. Eles se aproximaram na viagem que fizeram juntos à Europa e à Asia,, para conhecer os potenciais fornecedores do 5G brasileiro. Como é uma operação de imagem, porém, sem efeito real sobre a coordenação da logística de vacinação, acaba por enxugar gelo. Embora, publicamente, os ministros duelem nas redes contra os ataques a Bolsonaro, internamente se dedicam a esforços singelos como o de explicar, ao presidente da República, 270 mil mortos depois: “Não, presidente, ninguém aqui quer que o senhor abandone o spray nasal, mas o que as pessoas estão pedindo mesmo é vacina”.

Depois da cena montada no encontro da Pfizer, o ministro da Casa Civil, Paulo Guedes, dedicou-se ao esforço inútil de evitar que a PEC Emergencial desidratasse. Chegou a se deslocar até a casa do ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, na companhia do ministro da Casa Civil, Braga Neto, para tentar montar uma equação capaz de fazer com que o novo auxílio emergencial abrisse o menor rombo possível no Orçamento. “É muito barulho por quase nada”, definiu o diretor da Instituição Fiscal Independente, Felipe Salto, ao Valor.

Parlamentares que acompanharam a saga têm a convicção de que o buraco vai extrapolar os R$ 44 bilhões definidos na PEC. Tentativas como aquela feita por Guedes de fazer caber um novo programa de redução de salário e jornada no seguro desemprego, dizem, vai dar com os burros n’água. A aposta é de que, no mínimo, o rombo no Orçamento vai a R$ 100 bilhões, mas para caber o que todos querem, precisaria chegar à metade dos R$ 600 bi do Orçamento de Guerra. Como se sabe que dólar, inflação e juro explodiriam nesse cenário se seguram, mas não de graça.

Foi este Congresso que entrou em parafuso com a liberação da candidatura e com o discurso com o qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostrou que voltou ao jogo. Desmontou todos os arranjos para 2022 que vinham sendo feitos na base das lideranças que atuaram para a eleição de Lira, como o ex-prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM), que sempre estiveram em campo oposto ao do PT.

Foi a vez de o próprio presidente da República entrar em ação. Enviou um emissário a São Paulo para discutir com o ministro Nunes Marques a solução para deixar Lula com uma espada na cabeça que resultou no pedido de vistas da suspeição do ex-ministro Sérgio Moro. Fez ainda uma reintrodução, mal-ajambrada, do Estado de Sítio na crônica da crise. A pretexto de criticar o toque de recolher que vem sendo decretado em vários Estados, disse que a medida só pode ser abrigada sob regras de exceção previstas na Constituição. Ninguém levou a sério. Os três quintos da chancela do Congresso são insuperáveis.

Lula, porém, não desnorteou apenas o Congresso, mas os empresários que vinham buscando operar uma saída de cena institucional para Bolsonaro. Como a rejeição impera, as conversas de deslocaram para as costuras, que vêm de longe, de um nome de centro capaz de enfrentar o ex-presidente petista. O grupo, porém, não perdeu o foco.

Na tarde da sexta-feira, mais um vídeo foi para o ar, com duração de um minuto, em contagem regressiva. 

“No tempo que você gastará para ver esse vídeo, mas um brasileiro morrerá de covid, mais 50 ficarão infectados, mais 300 sem vagas nos hospitais. Enquanto isso Bolsonaro vai negar várias vezes a pandemia, debochar de quem usa máscara, menosprezar a vacina, agredir médicos, cientistas, jornalistas e governadores. E dizer que tudo é frescura e mimimi. Enquanto isso, Lira vai engavetar mais um pedido de impeachment. E Rodrigo Pacheco vai dizer que tudo é jogo de palavras. E você, o que pensa? O que passa agora do fundo do seu coração? O que está pensando em fazer para acabar com todo esse absurdo antes que tudo vá para o espaço? Fora Bolsonaro”.