Valor Econômico, n. 5205, v.21, 11/03/2021. Política, p.A10

 

 

 

Ida de Campos à Câmara cria polêmica

 

Alguns especialistas temem abertura de flanco que leve ao enfraquecimento da independência da autoridade monetária

Por Alex Ribeiro — De São Paulo

 

 

A ação do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para evitar que a Câmara dos Deputados desidratasse a PEC emergencial criou polêmica entre os especialistas. Alguns acreditam que, ao entrar em assuntos de política fiscal, abre-se um flanco para enfraquecer a independência da autoridade monetária.

 

“Em circunstâncias normais, o presidente do BC não deve se meter a falar de fiscal, como também ministro da Economia não deve falar do monetário”, diz o economista Armando Castelar Pinheiro, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV. “Quando o presidente do BC se expõe a falar, ele também se expõe a ouvir.”

 

Anteontem, Campos Neto teve um papel fundamental para impedir que a Câmara desidratasse a PEC emergencial, ao alertar para os riscos de a proposta ser o estopim de uma crise no mercado financeiro, causando a alta do dólar, dos juros e do risco-país.

 

O papel de defender a política fiscal, em tese, deveria ser do ministro da Economia, Paulo Guedes. “Mas, de alguma forma, infelizmente ele ficou isolado nessa discussão, na medida em que o próprio presidente Bolsonaro estava por trás da tentativa de desidratar a PEC emergencial.”

 

Castelar pondera, porém, que no mundo todo os banqueiros centrais passaram a falar mais de assuntos fora de sua alçada tradicional, depois que os juros em vários países foram baixados ao redor de zero e a política fiscal restou como a melhor alternativa para estimular as economias e evitar inflação muito baixa.

 

No ano passado, o presidente do Federal Reserve (Fed), Jerome Powell, foi um dos principais defensores de mais gastos fiscais, assim como a chefe do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde. “Mas os recados foram passados de forma pública, pela imprensa, em eventos, e não em reunião direta com congressistas”, pondera o economista.

 

Castelar, porém, diz que não discorda da iniciativa de Campos Neto, dadas as circunstâncias fiscais, que podem atrapalhar não apenas a política monetária no curto prazo, mas serem o estopim de uma deterioração nas contas públicas que aproximaria o país de uma situação de dominância fiscal. “Mas, de novo, o porta-voz correto é o ministro da Economia.”

 

O ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC Tony Volpon afirma que a ação de Campos Neto se justifica pelas circunstâncias únicas da situação. “Estava vivendo um momento excepcional, um risco excepcional”, afirma Volpon, estrategista-chefe da WHG, uma gestora de recursos de terceiros. “Estávamos à beira do precipício.” Para ele, haveria problema apenas se o fato se repetisse ao longo do tempo.

 

Ele chama a atenção para dois lados na iniciativa de Campos Neto. Primeiro, o fato de ele aparentemente ter contrariado o desejo do presidente Bolsonaro, que defendia a desidratação da PEC emergencial, é um sinal de que a aprovação da lei que dá autonomia ao Banco Central está sendo efetiva.

 

“Talvez seja a primeira vez em que um presidente do BC agiu tão abertamente contra a vontade do presidente da República”, afirma Volpon. “Legalmente, no passado o presidente do BC poderia ter sido demitido, acusado de insubordinação.”

 

O outro lado da questão é que, ao tratar de assuntos fiscais, em tese o BC fica mais vulnerável a críticas ou tentativas de interferência no seu trabalho. Esse é um risco, pondera, que os bancos centrais do mundo todo passaram a se expor nos últimos anos, com a diluição das fronteiras entre as políticas monetária e fiscal - não apenas nas falas dos banqueiros centrais, mas em ações como a compra de dívida pública para realizar operações de expansão quantitativa.

 

“Surgiu o super banqueiro central, cheio de poderes”, afirma Volpon. “A crítica fora do Brasil é que, ao ficar poderoso e entrar em várias áreas diferentes, os bancos centrais correm o risco de perder autonomia.”

O diretor do Centro de Estudos Monetários do Ibre/FGV, José Júlio Senna, é outro que elogia a ação de Campos Neto, embora reconheça custos institucionais. “Negar isso seria absurdo”, diz o economista. “No médio e longo prazos, o ideal é que não se repita o que aconteceu.”

 

Feita essa ressalva, ele considera a iniciativa apropriada para as circunstâncias. O momento político é crítico, com parlamentares e governo sem revelar nenhum apetite para enfrentar o problema fiscal. Barrar a desidratação da PEC emergencial era crucial, argumenta, para evitar uma crise de maiores proporções.

 

Para Senna, Campos Neto era a pessoa mais gabaritada para expor aos parlamentares os riscos da proposta, porque tem acesso a muitas informações do mercado e entende do assunto, depois de fazer uma carreira em instituições financeiras. “Campos Neto tem credibilidade e os parlamentares estão dispostos a ouvi-lo”, pondera. “Seria inconcebível que tapasse o ouvido e se ausentasse nesta situação.”