Valor Econômico, n. 5204, v.21, 10/03/2021. Brasil, p.A5

 

 

 

Brics racham sobre proposta de suspensão de patentes

 

Brasil, Rússia e China usam da diplomacia para negar apoio à proposta de Índia e África do Sul para facilitar quebra de mecanismos de propriedade intelectual no combate à covid-19

Por Assis Moreira — De Genebra

 

 

Os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) mostraram um claro racha ontem sobre proposta indiana e sul-africana para que países possam suspender patentes e outros instrumentos de propriedade intelectual vinculados ao combate à pandemia de covid-19.

 

Valor apurou que, durante reunião virtual, Índia e África do Sul pediram apoio dos parceiros emergentes considerando que a proposta poderia acelerar a produção e disponibilidade de vacinas anticovid em todo o mundo. Mas ficou claro que Nova Déli não conseguiu convencer os demais de que os direitos de propriedade intelectual são uma barreira para acesso a fármacos na atual crise.

 

Representantes do Brasil, China e Rússia, diplomaticamente, “tomaram nota” e remeteram suas posições ao que já disseram na Organização Mundial do Comércio (OMC). Ou seja, já haveria flexibilidade suficiente no Acordo de Trips (propriedade intelectual), como o licenciamento voluntário em situação emergencial.

 

China e Rússia estão usando suas vacinas anticovid como instrumentos de diplomacia aguerrida e já vêm buscando acordos de produção com alguns parceiros. A avaliação na indústria farmacêutica ocidental é de que os gargalos para aumentar a produção de vacinas não estão relacionados à falta de licenças, mas sim ao abastecimento de ingredientes escassos, verificações de qualidade rigorosas e outros desafios logísticos e regulatórios.

 

Dentro do Brics não houve, porém, proposta para aumentar a cooperação na área de vacinas, por exemplo para aumento da venda de doses no grupo, em plena crise sanitária global, com escassez de doses, aumento no número de mortes e desempenho das economias depende da rapidez da imunização.

 

O Conselho do Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips) da OMC voltará a discutir a proposta de Índia e África do Sul nestas quarta e quinta-feiras, em meio a crescente pressão de organizações não governamentais (ONGs) a seu favor.

 

No Brasil, a Human Rights Watch conclamou o governo Jair Bolsonaro a mudar de posição e passar a defender a proposta. “O Brasil deveria estar do lado certo da história, mudar de posição e se unir aos governos que estão apoiando a suspensão temporária das regras de propriedade intelectual”, disse Anna Livia Arida, diretora-adjunta da Human Rights Watch no Brasil, em comunicado. “Um grupo de governos, incluindo o Brasil, vem bloqueando a proposta nos últimos cinco meses”, reclamou.

 

Para ela, a suspensão de Trips “permitiria mais colaboração internacional na fabricação de vacinas e outros produtos médicos - sem a necessidade de autorização das empresas que os desenvolveram - e poderia acelerar a produção e disponibilidade de vacinas em todo o mundo”.

 

O Brasil, porém, continuará sem apoiar a proposta de Índia e África do Sul, embora agora sem se manifestar como antes.

 

A diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, que manifesta preocupação com a falta de vacinas nos países em desenvolvimento, não indicou ainda como lidará com a questão. Ontem, em evento no Chatham House, um think tank britânico, ela disse que “discussões de importância vital estão se intensificando aqui em Genebra”, ao mesmo tempo em que “o fato é que as pessoas pagarão com a vida a cada dia a mais em que a escassez de vacinas continuar”.

 

Para Okonjo-Iweala, é possível “caminhar e mascar chiclete ao mesmo tempo”, ou seja, continuar a busca por soluções sobre Trips e aumentar a produção, “especialmente em mercados emergentes e países em desenvolvimento onde essas possibilidades existem”.

 

Como levariam anos para a construção de novas instalações de produção, aumentar a produção no curto prazo significa “aproveitar ao máximo a capacidade de manufatura existente, encontrando locais existentes e revertendo-os”. Segundo ela, a experiência recente sugere que reaproveitar instalações e examiná-las quanto à segurança e qualidade pode acontecer em seis ou sete meses, menos da metade do tempo que se pensava anteriormente.