Valor Econômico, n. 5201, v.21, 05/03/2021. Política, p.A8

 

 

 

Bolsonaro faz cálculo eleitoral, diz Costa

 

Para governador da Bahia, presidente estica a corda ‘ao máximo’ para polarizar parte da sociedade

Por Marina Falcão — Do Recife

 

 

O governador da Bahia, Rui Costa (PT), acredita que a conduta do presidente Jair Bolsonaro no enfrentamento à pandemia reflete um cálculo eleitoral que deve garantir ao presidente uma vaga no segundo turno nas eleições do ano que vem. “A conta dele é esticar a corda ao máximo, para polarizar parte da sociedade. Com isso, ele junta 30% dos votos”, afirmou ao Valor.

 

A Bahia enfrenta hoje “o pior cenário possível” nos hospitais, com ocupação de 100% da rede em Salvador e possibilidade de suspensão de atendimento do novos pacientes nas UPAs.

 

Diante disso, o petista aposta na autorização do Supremo Tribunal Federal (STF) para importação e aplicação de 50 milhões de doses da vacina russa Sputnik, mesmo sem aval da Anvisa. “Estamos numa guerra, 40 países já aplicam a Sputnik, por que a Anvisa ter que fazer todo o trabalho de novo?”.

 

Segundo Costa, se o STF desse sinal verde essa semana, seria possível começar aplicar a Sputnik nos Estados do Nordeste esse mês. O Consórcio Nordeste, que inclui os nove Estados da região, tem um pré-contrato para adquirir 50 milhões de doses.

 

Confira os principais trechos da entrevista concedida ao Valor na manhã de ontem.

 

Valor: O Consórcio Nordeste tem um memorando assinado para compra de 50 milhões de doses da vacina Sputnik, mas depende de autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Essa compra será viável?

Rui Costa: É viável no curto prazo. Já poderíamos ter colocado essa vacina aqui, mas até hoje a Anvisa não se posicionou. A maior parte dos lotes da Pfizer e da Johnson que o governo federal anunciou é para o segundo semestre. Quem chegará vivo até lá? O governo está criando uma ilusão de imunização, depois de ter depositado todos os ovos em uma cesta só e ficado com apenas duas opções de vacinas, a Coronavac e a AstraZeneca.

 

Valor: A autorização para a Sputnik pela Anvisa poderia ser dispensável?

 

Costa: Já deveríamos ter um marco legal autorizando que quando uma agência internacional de renome aprovasse uma vacina, não precisaríamos fazer todo o processo burocrático de novo. Estamos numa guerra, 40 países já aplicam a Sputnik, por que a Anvisa tem que fazer todo o trabalho de novo? Estamos achando que os europeus e os americanos vão matar o povo? Não faz o menor sentido. Só o Brasil está com essa posição. Se o Supremo autorizar a importação e a aplicação da Sputnik essa semana, começaríamos em março a aplicação.

 

Valor: O cientista Miguel Nicolelis, que deixou o comando do Comitê Científico do Consórcio Nordeste na semana passada, vinha alertando há bastante tempo para a necessidade de um “lockdown” nos Estados do região. Por que não foi feito antes?

 

Costa: Enquanto a realidade não grita, não é tão fácil convencer o povo com gráficos. Há um “delay” entre o diagnóstico científico e o convencimento da população. Quem é gestor público tem que mediar com a realidade concreta, não apenas com o desejo de fazer, senão se estabelece uma relação autoritária. Nossa região carrega indicadores sociais econômicos muito desfavoráveis de 2016 para cá, quando houve um aumento da pobreza e da extrema pobreza, piorando na pandemia. A informalidade é grande, as pessoas trabalham de dia para comer a noite. Quando tínhamos o auxílio emergencial era mais fácil. Fomos construindo um convencimento e, quando se consolidou a maioria, as medidas foram implementadas.

 

Valor: A população está respeitando o fechamento das atividades não essenciais em Salvador e o toque de recolher no interior?

 

Costa: A grande maioria está aderindo sim, com exceção de alguns parlamentares ligados ao presidente. Eventualmente, há reclamação do comércio. A medida de toque de recolher tem se mostrado extremamente eficiente, segundo me relatam todos os prefeitos, pois é a partir das 18h que a pessoas começavam a se aglomerar em bares e botecos e os jovens faziam festas. Estamos controlando esse tipo de contaminação.

 

Valor: No atual momento, seria necessário um “lockdown” nacional?

 

Costa: Não tenho a mínima expectativa de que o presidente articule isso ou permita ao Ministério da Saúde assumir a coordenação. A postura do presidente é de grande aliado do vírus. Somos o único país sem coordenação nacional e onde o presidente da República organiza tropa de choque para criticar medidas de proteção à vida. Isso cria uma confusão na cabeça da população. A situação me lembra o Titanic. O navio bate, as pessoas continuam dançando, mas não tem bote para todo mundo.

 

Valor: Qual o cálculo eleitoral do presidente com essa postura?

 

Costa: Ele sobrevive da crise. A conta dele é esticar a corda ao máximo para polarizar parte da sociedade. Quando a pandemia não acaba rapidamente, ele traz para o lado dele comerciantes e outros setores, como fez com os evangélicos com as “fake news” em 2018. Com isso, o presidente junta 30% dos votos e se garante no segundo turno nas próximas eleições.

 

Valor: O senhor acha que esse cálculo vai dar certo?

 

Costa: Eu acho que dará certo, no sentido de garantir que ele chegue ao segundo turno.

 

Valor: O ex-governador Jaques Wagner disse que o PT não desistiu da frente ampla, mas acha difícil um composição com Ciro Gomes (PDT). O que o senhor acha?

 

Costa: Para representar uma frente ampla, não podemos ter um discurso de ódio contra a direita, assim não vamos para lugar nenhum. Qualquer dos candidatos que estiver fazendo discurso de raiva, estará facilitando a vida do Bolsonaro. Ciro tem feito isso sistematicamente, inclusive atacando nominalmente várias pessoas da própria esquerda.

 

Valor: O PT abriria mão de ser cabeça de chapa em nome dessa frente ampla?

 

Costa: Acho que começar esse debate sobre 2022 facilitará a tarefa de Bolsonaro. O momento é de tentar salvar o máximo de vidas. Agora temos que tentar construir um pacto mínimo sem necessariamente colocar uma camisa de força nas candidaturas para o primeiro turno. Podemos ter mais de um nome, não precisamos antecipar o segundo turno. A melhor forma de derrotar Bolsonaro é levar o debate para conteúdo. Como ele não tem proposta, é um vazio completo, isso ficará claro para o eleitor. Não podemos permitir que a polarização tome conta. Foi isso que Bolsonaro fez até agora com aquele cercadinho em Brasília: pautou a mídia e a sociedade com os temas que ele queria, inclusive a esquerda, apostando naquela filosofia do falem mal mas falem de mim.