O Globo, n.32013 , 31/03/2021. País, p.8

 

Demissão de toda a cúpula das Forças Armadas é inédita

Gustavo Schmitt

31/03/2021

 

 

Alcides Vaz, da UNB, compara episódio com queda de Sylvio Frota, em 1977

A demissão, ao mesmo tempo, de toda a cúpula das Forças Armadas é um episódio inédito na História do Brasil. A crise gerada pelo presidente Jair Bolsonaro, porém, encontra paralelos com o período da ditadura militar, segundo o ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, Alcidez Vaz. Em 1977, o presidente Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército Sylvio Frota. Na ocasião, Frota mirava a Presidência da República e era contra a proposta de abertura gradual de Geisel.

— Estamos diante de algo inédito e sem precedentes — disse Vaz, que também é professor do instituto de Relações Internacionais da UNB — Agora, o assunto é de política doméstica e envolve a relação das Forças Armadas com o governo, ao passo que naquela época (1977) a discussão era sobre a redemocratização. Era o Geisel querendo empurrar um processo de abertura, ao passo que o Sylvio Frota era francamente contra.

Ambos generais, Geisel e Frota representavam duas alas opostas do regime. O presidente defendia uma política de abertura “lenta e gradual”, como ele mesmo a classificou, enquanto o grupo mais linha-dura, do qual o ministro do Exército fazia parte, se opunha à volta de civis ao poder. Após a demissão de Frota, Geisel promoveu mudanças em cargos de comando das Forças Armadas. Não houve trocas, porém, nos ministérios da Marinha e da Aeronáutica.

Para Vaz, a postura dos chefes militares que deixaram o governo ontem é sintoma de que as Forças Armadas não querem se envolver com a política, tampouco estão dispostos a endossar medidas extremas como estado de sítio ou estado de defesa, como prega Bolsonaro. Ele afirma que outros fatores contribuíram para o desgaste na relação entre a caserna e o presidente, como a gestão da pandemia, o que levaria a preocupação com a credibilidade e a imagem das Forças Armadas.

— Não creio numa ruptura institucional. Mas as Forças Armadas não querem estar relacionadas a tudo que implique envolvimento institucional com estratégias políticas do governo, como no confronto com governadores, com o Supremo e com o Congresso —disse.

Segundo o pesquisador, é preciso acompanhar os discursos da nova cúpula das forças armadas, já que a tendência é que Bolsonaro busque quadros que estejam em sintonia com as suas posições. Ainda assim, Vaz acredita que há, entres os militares da ativa, a postura de não se envolver com política.

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Tentativa frustrada

Bruno Goés

31/03/2021

 

 

CAMARA TRAVA AMPLIAR PODER DE BOLSONARO SOBRE MILITARES

O líder do PSL na Câmara, Vitor Hugo (GO), tentou ontem pautar um projeto que, se aprovado, daria ao presidente Jair Bolsonaro o poder de acionar o dispositivo de Mobilização Nacional durante a pandemia. Isso significa que, no caso de crise sanitária, Bolsonaro poderia interferir e expropriar a produção privada, além de mobilizar militares para ações determinadas pelo governo federal. A proposta abriria o caminho para o presidente atuar em “espaço geográfico” definido no combate à pandemia. Hoje, governadores e prefeitos são responsáveis por medidas restritivas de isolamento. A iniciativa foi barrada e gerou reações no Congresso.

O mecanismo é previsto na Constituição e foi regulamentado em lei específica para tempos de guerra. Assim como a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio, a Mobilização Nacional só pode ocorrer após pedido do presidente da República e aprovação do Congresso.

Autor do projeto e do requerimento de urgência para levá-lo à votação, Vitor Hugo destacou que a Mobilização Nacional foi regulamentada em 2007, quando o presidente era Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, na ocasião, só foi pensada para contemplar casos de guerra. A Constituição, no artigo 84, também assinala que a mobilização será invocada nesta circunstância.

Segundo o deputado, a ideia é colocar a crise na Saúde como motivo para a mobilização. Ele nega que o projeto tenha o objetivo de dar ao Executivo o poder de interferir em políticas de estados e municípios no combate à pandemia, “pois isso não está na lei”. Com frequência, Bolsonaro faz críticas a governadores e prefeitos que adotam medidas de isolamento social.

— Essa medida é menos gravosa do que a decretação do Estado de Sítio, Estado de Defesa ou Intervenção Federal, porque não prevê afastamento de nenhuma das garantias fundamentais dos cidadãos —diz Vitor Hugo.

ASSINATURA DO CENTRÃO

O líder do PSL tentou levar o tema ontem à reunião de líderes, mas não houve consenso para a votação, mesmo com o requerimento assinado também por um bloco que integra o Centrão.

O texto diz que o “Poder Executivo designará o órgão da administração pública responsável pela coordenação dos esforços e especificará o espaço geográfico do território nacional em que será realizada e as medidas necessárias à sua execução”.

A intenção do parlamentar gerou reações. Em sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) disse que o projeto serve ao propósito de um “golpe de Estado”. Ele lembrou os momentos em que antecederam o golpe militar de 1964.

— O líder do PSL está falando que não serve para o golpe. Mas a vacância de João Goulart foi decretada pelo Congresso Nacional. A substituição da Presidência de João Goulart por Ranieri Mazzilli foi decretada pelo Congresso. Com tanque na porta dos Poderes. O que se está assistindo, e de uma maneira anestesiada, que assusta, tanto do ponto de vista das instituições como da sociedade, é, sim, um golpe em curso — afirmou Kataguiri durante a sessão.