O Globo, n.32010 , 28/03/2021. Sociedade, p.16

 

Negligência no combate à covid

Aguirre Talento

28/03/2021

 

 

PARA ESPECIALISTAS, ATUAÇAO DE JAIR BOLSONARO VIOLA LEIS

A atuação do presidente Jair Bolsonaro e de integrantes de seu governo na pandemia da Covid-19,que já custou avida de mais de 300 mil pessoas no Brasil, pode ser enquadrada em diversos crimes previstos no Código Penal, desde homicídio a infração de medida sanitária. A avaliação é de investigadores do Ministério Público Federal( MPF)c om experiência naáre acrimina l ouvidos pelo GLOBO.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, arquivou, até o momento, todas as representações que acusaram o presidente de crimes na pandemia. Eventuais falhas do governo federal, para ele, devem ser objeto de apuração de crimes de responsabilidade pelo Congresso Nacional, por estarem restritas à esfera política. Neste caso, possíveis crimes de responsabilidade devem ser processados por meio de pedidos de impeachment.

O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) não acolheu nenhum dos 64 pedidos apresentados por diversas entidades quando presidia a Câmara. Um pedido de impeachment só pode ser aberto por decisão do presidente da Casa, atualmente o deputado Arthur Lira (PPAL), aliado de Bolsonaro. Em pedido de impeachment apresentado no ano passado e assinado, entre outros, pelos juristas Celso Bandeira de Mello e Lênio Streck, advogados do grupo Prerrogativas listaram crimes de responsabilidade, como atentar contra o direito à saúde da população e a segurança interna do país.

“As atitudes do presidente tiveram caráter substancialmente atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros, em reiterado e perigoso menosprezo à gravidade da emergência de saúde decretada pelo próprio governo, no sentido de perpetrar intencional sabotagem das cautelas sociais e medidas indispensáveis à contenção dos efeitos devastadores de uma catástrofe sanitária em pleno estágio de avanço, sem considerar sequer as evidências traduzidas na escalada do número de diagnósticos e mortes”, diz a representação. Fontes ouvidas pelo GLOBO apontam outros crimes de responsabilidade que também poderiam ser caracterizados na gestão da pandemia, como governar de modo incompatível com a dignidade, decoro do cargo e atentado contra a segurança internado país. Pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente não pode ser alvo de acusação de improbidade administrativa na esfera civil. Mas o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello já éalv ode ao menos dois inquéritos de improbidades, abertos no M PF do Amazona seno do Distrito Federal. Há suspeita de que que falhas do ministério contribuíram para o colapso no fornecimento de oxigênio aos hospitais do Amazonas. E de omissão no socorro financeiro a estados e municípios no combate à Covid-19.

SEM FISCALIZAÇÃO

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) recebeu representações do conselho federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de dentro do próprio MPF, pedindo providências sobre eventuais crimes de Bolsonaro. Mas apenas Aras tem atribuição constitucional de investigá-lo criminalmente. Aras foi escolhido pelo presidente para o cargo sem concorrer à lista tríplice da categoria. E tem sido alvo de críticas internas por não atuar para fiscalizar as ações de Bolsonaro durante a pandemia. Procuradores e promotores do Acre e do Ceará apontaram, em documentos enviados à PGR, que Bolsonaro cometeu crime de infração de medida sanitária preventiva em visitas aos estados, que geraram aglomerações. O crime está caracterizado no artigo 268 do Código Penal e tem pena prevista de detenção de até um ano. Na representação conjunta, o MPF e o Ministério Público Estadual do Acre descrevem que a comitiva presidencial descumpriu leis federal e estadual que determinam obrigatoriedade do uso de máscaras, além de ter promovido aglomeração quando a lotação de UTIs no estado estava próxima dos 90%, com decretação de nível de emergência estadual.

Ministros que participaram dos eventos também podem ser enquadrados no delito. A OAB listou outros eventuais crimes, entre eles os artigos 132( perigo para avida de outrem ),315( emprego irregular de verbas ou rendas públicas) e 319 (prevaricação). Para a entidade, quando o presidente, em maio de 2020, instruiu a Saúde a editar protocolos o breou soda hidroxicloroquina, comprovadamente sem eficácia contra a Covid-19, e passou a propagar seu uso, ele cometeu o crime previsto no artigo 132.

GASTOS COM CLOROQUINA

Já os gastos com a compra de cloroquina configuram, na avaliação da OAB, crime de emprego irregular de verbas ou rendas públicas. A própria PGR apontou a hipótese da caracterização desse crime ao pedir abertura de inquérito no STF contra o então ministro Pazuello. Mas não considerou que Bolsonaro foi responsável pelo fato, apesar de ter sido o presidente o principal propagador do uso do medicamento. O inquérito contra Pazuello foi enviado à primeira instância porque ele perdeu o foro privilegiado. Dois procuradores do MPF ouvidos pelo GLOBO apontam que Bolsonaro poderia ser denunciado até mesmo por múltiplos homicídios, por meio de omissão.

A modalidade omissiva está prevista no artigo 13 do Código Penal. Segundo uma das fontes, seria necessário caracterizar uma conduta específica do presidente, que poderia ter funcionado como causa de mortes. A situação seria semelhante, na avaliação das fontes, à de uma babá contratada para cuidar de uma criança. Caso ela se omita e deixe de alimentá-la, poderia incorrer em crime de homicídio.