O Globo, n.32007 , 25/03/2021. Sociedade, p.10

 

Na contramão da ciência

Rafael Garcia

25/03/2021

 

 

COVID ACELERA, E PAÍS SOMA 300 MIL MORTOS

Um ano e sete dias após o registro da primeira morte por Covid-19 no Brasil, o país chegou ontem a 301.087 óbitos pela doença. A marca foi atingida na semana em que o presidente da República empossou seu quarto ministro da Saúde. Especialistas responsabilizam a atuação do governo federal pelo número, por ignorar o que a ciência recomenda.

O país registrou ontem 2.244 mortes pela doença, em meio a uma escalada acentuada nos números. Para entender o que poderia ter sido diferente na qualidade da resposta do Brasil à Covid-19, O GLOBO conversou com especialistas que participaram da criação de políticas públicas no país e não tiveram suas recomendações seguidas.

Um deles foi Julio Croda, ex-diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do ministério. Ele afirma que o primeiro grande erro do presidente foi bloquear a adoção de uma política nacional de distanciamento social.

— Nós queríamos dividir o Brasil em regiões de saúde e ter desenvolvido indicadores epidemiológicos claros, que estariam associados a medidas restritivas a serem adotadas — conta o médico. —Isso não foi feito, e foi o grande motivo de eu ter saído do ministério.

A marca de 300 mil atingida hoje já é 67% maior do que a projeção mais pessimista do Ministério da Saúde um ano atrás, quando Croda estimou que o Brasil poderia atingir 180 mil óbitos por Covid-19.

O epidemiologista Wanderson Oliveira, ex-secretário de Vigilância em Saúde no ministério, considerava essa marca um exagero.

—Esse número de 180 mil era inaceitável. Qualquer pessoa com o mínimo de espírito humano faria de tudo para para isso não se concretizar — afirma Oliveira, outro nome chave no desenho da resposta à Covid-19 no início da pandemia.

O técnico de carreira do ministério havia desenhado um plano de testagem para Covid-19 no país, que nunca foi adotado plenamente, dificultando o monitoramento da situação e o trabalho de rastreamento de contatos e isolamento dos infectados.

— Para cada caso confirmado, fizemos de um a dois testes, enquanto o Chile faz 11, os EUA fazem 12, a Alemanha faz 17 e o Reino Unido, 20 —diz Oliveira.

Outra especialista ignorada pela gestão federal foi a epidemiologista Ethel Maciel, da Universidade Federal do Espírito Santo. Ela estava num painel de consultores que subsidiava o plano nacional de vacinação da Covid-19, que não teve recomendações adotadas.

—Se o governo tivesse ouvido a ciência, teria feito aquele acordo com a Pfizer para 70 milhões de doses, teria feito o contrato com o Butantan mais cedo, teria ido atrás da Janssen, que desde cedo dizíamos ter uma vacina estratégica, por ser de dose única —afirma a pesquisadora. — Nós não chegamos a 300 mil mortos por acaso, nós chegamos a essa marca por uma incompetência da condução da crise sanitária no Brasil.

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Sepultamentos sem velório agravam o luto na pandemia

Audrey Furlaneto

Ivan Martinez-Vargas

25/03/2021

 

 

Em poucos minutos, corpos são enterrados em caixões lacrados, e familiares vivem despedidas solitárias; representante do setor funerário diz que há risco de colapso

Bruna Silva deixou o marido no hospital na primeira semana de março. Foi quando viu Bruno Cesar Oliveira Silva, de 38 anos, pela última vez. A suspeita de Covid-19 se confirmou, e o analista de dados foi internado no mesmo momento em que chegou à emergência do Hospital Balbino, em Olaria, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Vinte e um dias depois, ela seguia o caixão lacrado como corpo do marido no Cemitério do Caju.

— Pode abrir um pouquinho para eu ver meu marido pela última vez? — pediu Bruna ao agente funerário. A resposta foi não.

Em menos de cinco minutos, o caixão deixou o carro da casa funerária e foi sepultado, cercado porcinc ofa miliares. O filho de 8 anos não estava entre eles—amã e decidiu poupar acriança.

— Está aqui mais uma vítima do desgoverno — dizia, entre lágrimas, a tia de Bruno, Claudia dos Santos Silva.

Ao batera sombria marca de 300 mil mortos pela Covid-19, os enterros no país são acelerados, e a ausência de velórios, uma diretriz desde o início da pandemia, impõe às famílias um ritual de sepultamento solitário e rápido.

O GLOBO acompanhou cinco enterros de vítimas da Covid-19 no Cemitério do Caju, na Zona Norte do Rio, na última sexta-feira. O mais longo levou 12 minutos. O mais rápido, quatro. Num deles, a neta, de 24 anos, enterrava sozinha o avô, de 78 anos, depois de a mãe também ter a suspeita de Covid confirmada. O cenário visto no Caju se repete por todo país.

Em São Paulo, a auxiliar Cristiana Graça da Silva foi uma das primeiras pessoas a chegar ao cemitério da Vila Formosa, ontem, logo quando os portões foram abertos, às 8h. Foi enterrar o tio, Wallace dos Santos, que morreu na segunda-feira, aos 60 anos, dois dias depois de ser internado com Covid-19.

Ao chegar ao cemitério, o maior da América Latina, Cristiana recebeu uma senha, de número 18, para aguardar a liberação do caixão. Quando os portões foram abertos, já havia mais de 50 pessoas à espera para se despedir de familiares e amigos que sucumbiram ao coronavírus.

‘CORPOS MERECEM RESPEITO’

Cristiana e mais sete familiares esperaram por uma hora e meia no saguão do velório, em meio a dezenas de familiares de outros mortos. Por volta das 10h, o caixão de Wallace foi transportado em uma van com mais dois corpos para ser sepultado. O enterro foi realizado na quadra 101, em menos de dez minutos.

Para o presidente da Associação de Empresas e Diretores do Setor Funerário (Abredif ), Lourival Panhozzi, o país vive um período de descarte de corpos, e não sepultamento de pessoas.

— O que estamos fazendo hoje é indigno, com enterros em poucos minutos. Esses corpos merecem respeito — diz Panhozzi, que não descarta um colapso funerário no Brasil:

— Seria prepotência dizer que não existe risco de faltar urna funerária. Na situação em que estamos, existe risco de tudo. Estamos com 500 mil óbitos previstos no trimestre, ou 5.555 óbitos por dia. A média normal era de 3.575 por dia, ou seja, são 2.000 óbitos a mais por dia. É uma cidade média do Brasil que desaparece por mês.

A Abredif fez uma chamada aos cemitérios para que suspendam férias de agentes funerários pelos próximos 60 dias. Também solicitou aos fabricantes de urnas que trabalhem em sua capacidade máxima. Só assim, acredita, o país não enfrentará uma escassez de caixões.

— Pedimos aos que têm capacidade de produzir 110 mil urnas por mês que trabalhem para atingir esse número ou mais, pois precisamos que produzam nos próximos três meses no mínimo 400 mil urnas. Para o próximo trimestre, trabalhamos com um número absoluto de 500 mil mortes. E temos um estoque regulador de pouco mais de 100 mil urnas. (Só) com esse aumento na produção, conseguiremos adequar à necessidade.

Segundo a prefeitura do Rio, o protocolo exige que as urnas sejam lacrada seque não ocorram cerimônias fúnebres. De 1º de março até o último dia 21, foram realizados ao todo (não apenas de vítimas de Covid) 4.644 sepultamentos na cidade, um aumento de 33% com relação ao mesmo período do ano passado.

Professora de psiquiatria da Unicamp, Clarissa de Rosalmeida Dantas trabalha no serviço de Apoio Emocional aos Pacientes com Covid-19 e seus Familiares, o Apem-Covid, criado no Hospital de Clínicas da Universidade de Campinas (SP ). Sem velório, sema possibilidade dever o cor pode seus entes queridos uma última vez, a experiência do luto sofre uma ruptura, explica ela:

— Os rituais funerários são uma marca da cultura ocidental, ajudam a assimilar uma passagem difícil. A faltadoda possibilidade dever o corpo dá ao luto um sentimento de irrealidade, que já existe numa situação de perda, mas é muito agravado pela impossibilidade de ver o corpo. Os familiares tornam-se prisioneiros da ambiguidade.

Ela lembra que muitos dos atendidos no HC da Unicamp criavam “fantasias acerca da troca de corpos, ou mesmo a ideia de que a morte de seu ente querido havia sido erroneamente comunicada, o que é acentuado pelo cenário político de negação da pandemia”.

Há, segundo ela, algo semelhante ao que foi experimentado pelos familiares dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar.

— O desaparecido torna-se uma figura envolta por penumbra, não está morto, tampouco está vivo. Está presente e ausente. É como se fosse negada à família a certeza da morte. A última despedida, a última homenagem, a reunião em torno do corpo pela última vez, tu dois so dá materialidade à morte. É possível criar outros rituais para ajudara assimilara perda. Criar uma forma de compartilhar memórias da pessoa que morreu, por exemplo, é um caminho. E buscara rede de afetos, sempre.