Título: A dívida dos municípios
Autor: Cid Heraclito de Queiroz
Fonte: Jornal do Brasil, 03/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

A dívida pode ser minorada sem radicalismos incompatíveis com

As origens dos orçamentos públicos remontam à Magna Carta, com regras impostas pelos barões ingleses, em 1215, na Idade Média, ao despótico Rei João-sem-Terra, a fim de conter as despesas da coroa britânica, mediante a limitação à liberdade de o monarca, para custeá-las, lançar tributos indiscriminadamente. ''A história do orçamento - observou o professor Alfred Buehler, da Universidade da Pennsylvania - é a história de séculos de lutas pelo controle popular do tesouro público''. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000) é, sem dúvida, um marco histórico nas finanças públicas do país, objetivando não só o saneamento financeiro da União, dos estados e dos municípios, mas também a manutenção do equilíbrio das contas do Tesouro Público, indispensável ao crescimento econômico e ao bem-estar social. A LRF está gerando uma nova postura dos brasileiros diante dos governantes, para fiscalizar-lhes a conduta quanto ao tratamento dispensado ao produto dos tributos cobrados à sociedade. O berço da LRF foi o BNDES onde procuramos dar forma jurídica adequada aos estudos e propostas de um grupo de competentes especialistas, chefiados por José Roberto Afonso, do que resultou o anteprojeto governamental que se transformou, com as modificações introduzidas pelo Congresso Nacional, na LRF, festejada no país e no exterior e já copiada por vários países. Com o apoio da imprensa, a LRF vem resistindo a várias propostas de sua alteração, para afrouxar a contenção financeira de estados e municípios, que relutam em adotar medidas saneadoras.

Com a posse dos novos prefeitos municipais, vieram a público as situações de elevado endividamento de diversas municipalidades. Diante desse quadro, surgiram propostas de alteração da LRF, para evitar a responsabilização de governantes, tanto a criminal, por iniciativa do Ministério Público, como a civil e administrativa, por decisão dos Tribunais de Contas, e, ainda, para possibilitar mais uma novação das dívidas junto ao Tesouro Nacional, naturalmente à conta do bolso do contribuinte. Nada disso se justifica. Todos tiveram tempo de tomar as medidas adequadas. Não é difícil reduzir a despesa pública municipal. Como medidas emergenciais, podem ser citadas, afora o costumeiro contingenciamento: (a) a extinção, fusão ou a temporária desativação de secretarias, autarquias, órgãos e unidades administrativas, com a exoneração dos titulares de cargos em comissão, o remanejamento do pessoal e dos equipamentos e a desocupação de salas e prédios; (b) a alienação de automóveis e outros veículos, equipamentos e materiais inservíveis; (c) a suspensão ou adiamento na execução de programas e atividades não essenciais ou supérfluos; (d) a desestatização de empresas, empreendimentos ou atividades; (e) o arrendamento de centros de convenção, estádios e teatros; (f) a cessão de ginásios e outras instalações esportivas a universidades, colégios e clubes: (f) a concessão, a empresas privadas, de serviços públicos, como o transporte urbano em ônibus, trens e metrôs, a coleta e destinação de lixo, a construção e manutenção de vias expressas, pontes e túneis; (g) a transferência a entidades privadas dos encargos relativos à realização de festejos e outros eventos e os de conservação e limpeza de parques, praças e praias, com a contrapartida publicitária; (h) a redução dos subsídios dos vereadores, etc.

Todavia, a questão da dívida dos municípios junto ao Tesouro Nacional merece algumas reflexões, até porque as soluções podem ser encontradas sem alteração da LRF, cuja intocabilidade deve ser defendida por todos, a não ser para aperfeiçoá-la aqui e ali, mas sem a pressão de governantes. Visando coibir uma das práticas mais nocivas às finanças públicas, a LRF, em seu art. 35, vedou a realização de novas operações de crédito (e outras a ela equiparadas) entre entes públicos, inclusive sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente. A novação é modalidade de extinção da obrigação, pela qual uma nova obrigação extingue e substitui a anterior, podendo ser objetiva (substituição da dívida por outra), subjetiva passiva (substituição do devedor) ou subjetiva ativa (substituição do credor). O refinanciamento e a postergação da dívida constituem, em realidade, uma novação. O refinanciamento, como praticado pelas instituições bancárias, abrange, em muitos casos, não só a novação, em sentido estrito, como a concessão de um crédito mais amplo. A postergação diz respeito ao adiamento da data de vencimento da dívida, no todo ou em parte.

Os contratos firmados entre a União e os municípios constituem dupla novação. A União assumiu as dívidas dos municípios perante os credores originários e os municípios obrigaram-se a pagar à União, em 360 prestações mensais, as dívidas por esta assumidas. Na forma da lei (M.P. nº 2.185-35, de 2001), os municípios obrigaram-se a pagar a dívida acrescida de atualização monetária calculada pela variação do IGP-DI da FGV ou por outro índice que o substitua e de juros nominais de 9% ao ano, que podem ser reduzidos para 6% ou 7,5%, nas hipóteses preestabelecidas. Nos instrumentos contratuais, entretanto, foram acrescentadas duas condições não previstas na lei: (a) a substituição do IGP-DI da FGV somente poderá ocorrer no caso de sua extinção; (b) a dívida não será monetariamente corrigida, na hipótese de variação negativa do IGP-DI (provável num prazo de 36 anos). Assim, os municípios têm o direito à re-ratificação dos contratos, para correção dos dois pontos. Nessa oportunidade, o IGP-DI poderia ser substituído por outro índice, mais adequado, tanto mais que a atualização da dívida refinanciada vem gerando, ao que se informa, um valor muito maior do que o decorrente do índice aplicado à dívida assumida pela União junto aos credores originários (basicamente Taxa Selic). A ratio legis da disposição legal aplicável foi a de prescrever, na linha de diplomas legais anteriores, uma ajuda substancial aos municípios que se encontravam altamente endividados. Nunca a de gerar ganhos financeiros para a União. Sob o ângulo político, essa é a melhor solução, por não depender de modificação da LRF.

Por outro lado, os contratos autorizam, com base na lei, a compensação das dívidas assumidas e refinanciadas pela União com créditos dos municípios, derivados de obrigações contratuais celebradas antes de 31 de janeiro de 1999. Ora, vários municípios são titulares de créditos junto ao Fundo de Compensação de Variações Salariais-FCVS (gerido pela União), derivados de obrigações contratuais vencidas, líquidas e certas. A compensação não pode ficar sujeita exclusivamente ao arbítrio da parte credora, ou seja, a uma condição potestativa. A compensação pode ser feita no valor global da dívida ou no valor das prestações.

Em tais condições, a questão da dívida dos municípios pode ser minorada por tratamento técnico, sem radicalismos incompatíveis com a hora presente e os propósitos do presidente da República, reconhecidamente adepto das soluções amigavelmente negociadas.

Cid Heraclito de Queiroz foi Procurador-Geral da Fazenda Nacional (1979/1991)