O Globo, n.32006 , 24/03/2021. País, p.6,7,8

 

Derrotados, Kassio e Fachin questionam o uso de mensagens

André de Souza

Carolina Brígido

24/03/2021

 

 

Ministros falam em precedente perigoso e pedem decisão sobre legalidade dos diálogos; Cármen diz não ter levado em conta

Durante o julgamento do ex-juiz Sergio Moro pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o uso de mensagens da Lava-Jato de Curitiba, obtidas ilegalmente por um hacker, foi debatida pelos ministros. Derrotados, Kassio Nunes Marques e Edson Fachin questionaram o uso do material. Os outros ministros evitaram usar as mensagens para sustentar seus votos pela suspeição de Moro, embora tenham citado os diálogos.

Primeiro a votar ontem, o ministro Kassio Nunes Marques, que se posicionou contra o pedido de Lula para declarar Moro parcial, criticou o uso das mensagens.

— Se o hackeamento fosse tolerado como meio para obtenção de provas, ainda que para defender-se, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade, de seus bens e de sua liberdade. Tudo seria permitido. São arquivos obtidos por hackers, mediante a violação dos sigilos ilícitos de dezenas de pessoas. Tenho que são absolutamente inaceitáveis tais provas. Entender-se que resultados de tais crimes seriam utilizáveis seria uma forma transversa de legalizar a atividade hacker no Brasil — disse Nunes Marques.

Ele citou frase do ministro Gilmar Mendes, que acredita na veracidade das mensagens, para criticá-las.

— Está registrada nos anais desta Corte a célebre, a acertada frase dita pelo ministro Gilmar Mendes: não se combate crime cometendo crime. Não podemos errar, como se supõe que errou o ex-juiz Sergio Moro, como se supõe que erraram os membros do MPF. Seria uma grande ironia e o prenúncio de um looping infinito de ilegalidades aceitarmos provas ilícitas resultantes de um crime, para comprovar um suposto crime praticado para apurar outro crime. Dois erros não fazem um acerto —disse Nunes.

Em seu voto para declarar a parcialidade de Moro, Gilmar destacou que não se baseou nas mensagens, mas em outros elementos, e não endossou a tese de que o material pode ter sido alterado, como fez Nunes Marques.

—Realmente me choca tudo aquilo que se revela, e a defesa que se faz: “Ah, pode ter havido inserções, manipulações?”. Eu já disse aqui: ou o hacker é um ficcionista ou nós estamos diante de um grande escândalo, e não importa o resultado deste julgamento, a desmoralização da Justiça já ocorreu, o tribunal de Curitiba é conhecido mundialmente como um tribunal de exceção.

VOTO DE CÁRMEN LÚCIA

Já o ministro Edson Fachin, relator dos processos da Lava-Jato no STF, avaliou ser necessária ainda uma avaliação sobre a integridade das mensagens.

— Os fatos realmente são graves, e se forem verdadeiros mesmo, a solução pode ser, e quiçá deva ser, a nulidade. Mas não posso admitir que isso seja feito sem que as dúvidas sobre a integridade do material sejam examinadas, sem que a sua contextualização seja profundamente aferida e sem que haja um mínimo de instrução competente. Entendo que é atribuição do TRF4 examinar a legalidade do material, ouvir os envolvidos, e definir a responsabilidade dos agentes, embora este encaminhamento já está vencido pela decisão da maioria desta Turma —disse Fachin.

Já o ministro Ricardo Lewandowski atestou a veracidade dos diálogos, dizendo que eles foram periciados pela Polícia Federal e usados para denunciar e condenar os hackers. E, embora sem usar as mensagens para embasar seu voto, afirmou que fatos surgidos após a defesa ter feito seu pedido, podem sim ser considerados.

— Nenhum dos diálogos foi desmentido. Até uma nova perícia agora se tornaria impossível. Por quê? Porque os membros da Operação Lava-Jato de Curitiba, em nota pública, disseram que apagaram as mensagens. E o ex-juiz Sergio Moro, em depoimento que prestou aqui, disse que acabou deletando as mensagens que teriam sido hackeadas — disse Lewandowski, concluindo depois que, mesmo se ilícitas, as provas poderiam ser aproveitadas:

— Faço menção a uma jurisprudência absolutamente torrencial, não apenas do Supremo Tribunal Federal, mas dos tribunais do país, que provas ilícitas, admitindo que sejam ilícitas, podem sim ser utilizadas a favor dos acusados. Mas neste caso do habeas corpus, não o foram.

A ministra Cármen Lúcia, que deu o voto de desempate pela parcialidade de Moro, disse que não levou em conta as mensagens da Spoofing para embasar seu voto.

—Os dados que me levam à conclusão a que chego no meu julgamento são os que estão postos nos autos como devidamente comprovados — disse Cármen, acrescentando: —Até porque não sei o conteúdo desses vazamentos [as mensagens da Spoofing], o certo é que não me baseio nesse tipo de dado.

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Na maior derrota da Lava-Jato, STF cria embaraço jurídico e cristaliza processo de desgaste da operação

Marco Grillo

24/03/2021

 

 

Em um despacho de 22 páginas, em junho de 2016, o então ministro Teori Zavascki encerrou uma dúvida que durava três meses e deu novo fôlego à Lava-Jato ao devolver para Curitiba inquéritos envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — na ocasião, os casos estavam em análise no Supremo Tribunal Federal, após a nomeação de Lula na Casa Civil ser barrada. Ontem, quase cinco anos depois, a mesma Segunda Turma que o ministro integrou enquanto esteve na Corte —um acidente aéreo em janeiro de 2017 interrompeu a trajetória — impôs a maior derrota da operação até aqui.

Não foi o primeiro revés e é possível que não seja o último, mas, ao afirmarem que o ex juiz Sergio Moro foi parcial quando julgou e condenou Lula noca sodo tríplex do Guarujá, os ministros explicitaram que a crise da Lava-Jato atingiu outro patamar. Além das consequências jurídicas, com um dos processos do principal alvo da operação empurrado para a estaca zero, a decisão fortalece argumentos, difundidos em estratos dos meios político e jurídico, sobre possíveis excessos praticados por Moro e pela força-tarefa.

Há novas investidas por toda aparte. Ontem, O GLOBO mostrou que um inquérito aberto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para investigar supostas ilegalidades cometidas por investigadores da Lava-Jato tem seis procuradores na mira, incluindo integrantes da Procuradoria-Geral da República (PGR). O inquérito, baseado apenas em notícias veiculadas pela imprensa e em uma entrevista dada pelo hacker Walter Delgatti Neto, responsável pelo acesso a mensagens trocadas por procuradores, já foi criticado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. A ministra Rosa Weber, ontem, no entanto, negou um pedido para que a apuração seja suspensa.

As mensagens extraídas do Telegram deram origem também a procedimentos em curso no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Conselho Nacional do Ministério Público.

É um cenário distinto daquele em que integrantes da força-tarefa, capitaneados por Deltan Dallagnol, tinham força o bastante para reunir milhões de assinaturas e enviar propostas ao Congresso mirando o “combate à corrupção”. E é bem diferente até mesmo de outros momentos em que a Lava-Jato teve seus interesses contrariados, seja pela via judicial ou legislativa.

No fim de 2019, o STF modificou o entendimento anterior e derrubou a prisão após a condenação em segunda instância — bandeira tradicional da operação —, condicionando a detenção ao trânsito em julgado da ação. Meses antes, a Corte já havia definido que caberia à Justiça Eleitoral julgar crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, quando analisados em conjunto com o caixa dois. A decisão retirou da Lava-Jato casos envolvendo dezenas de políticos.

Naquele mesmo ano, outra decisão entrou no caminho da operação: a Corte definiu que réus que foram alvos de delação premiada têm o direito de apresentar as alegações finais depois dos réus delatores que façam parte do mesmo processo. A decisão abriu caminho para a anulação da sentença em que Moro condenou o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine.

No Congresso, por onde circulam no mes que já se viram às voltas com a operação, derrotas da Lava-Jato também se tornaram frequentes. O pacote anticrime, apresentado por Moro em sua versão ministro de Jair Bolsonaro, foi modificado aponto de incluir o juiz de garantias, agenda oposta à do ex-magistrado —e que não foi adiante por força de uma liminar do ministro Luiz Fux, hoje presidente do STF. Deputados e senadores também aprovaram a Lei de Abuso de Autoridade, o que, na ocasião, contou com o apoio de Arthur Lira (PP-AL), hoje presidente da Câmara e também um dos alvos da operação. “O Estado Policial, para o qual a Lava Jato descambou em certos momentos, lamentavelmente, com suas parcialidades, seletividade e perseguições, jamais poderá também merecer o perdão da História”, escreveu ontem no Twitter.

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Voto de Cármen sobre Moro pega Planalto de surpresa

Bela Megale

24/03/2021

 

 

Para auxiliares do presidente Jair Bolsonaro, mudança de posicionamento da ministra do STF consolidou mais uma vitória do ex-presidente Lula

A mudança de voto da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia, que foi decisiva para sacramentar ontem a parcialidade de Sergio Moro nos processos envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pegou de surpresa o Palácio do Planalto.

De acordo com integrantes do governo do presidente Jair Bolsonaro, a expectativa era que ela seguisse a mesma linha que adotou há dois anos, no início do julgamento, e se manifestasse contra a suspeição do ex-juiz federal da Operação Lava-Jato.

O voto da ministra Cármen Lúcia também desagradou alguns auxiliares de Bolsonaro, já que consolida mais uma vitória do ex-presidente Lula. O petista se posiciona como adversário direto do presidente nas eleições do ano que vem para o Palácio do Planalto.

Por outro lado, o voto que agradou o governo veio do ministro Kassio Nunes Marques, indicado para a Corte por Bolsonaro. Ele se manifestou contra a suspeição de Sergio Moro, o que poderia abrir caminho para que Lula voltasse a ser declarado inelegível, na visão de integrantes do governo.

Com Sergio Moro considerado suspeito pelo Supremo, os atos processuais e provas colhidas pela Lava-Jato de Curitiba não poderão ser usados pelo juiz de Brasília que, agora, passa a conduzir as ações envolvendo o petista.

DEFESA DE LULA COMEMORA

A defesa do ex-presidente Lula afirmou que a decisão da Segunda Turma do STF fortalece o “sistema de Justiça e a importância do devido processo legal”. “Esperamos que o julgamento realizado hoje pela Suprema Corte sirva de guia para que todo e qualquer cidadão tenha direito a um julgamento justo, imparcial e independente, tal como é assegurado pela Constituição da República e pelos Tratados Internacionais que o Brasil subscreveu e se obrigou a cumprir”, diz a nota assinada pelos advogados Cristiano Zanin e Valeska Martins.

Os advogados também chamam a decisão de “histórica e revigorante para o Estado de Direito e para o devido processo legal” e lembram que o habeas corpus foi apresentado em novembro de 2018. Alegam ainda que a parcialidade do ex-juiz e incompetência da Justiça Federal de Curitiba para julgar Lula foi sustentada desde a primeira manifestação no processo em 2016.

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Nas redes sociais, políticos reagem à decisão da 2ª turma

Filipe Vidon

24/03/2021

 

 

Lira diz que Lava-Jato não terá perdão da História; Mandetta fala em 'Operação abafa em curso'

Pouco tempo depois de a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarar que o ex-juiz da Lava-Jato Sergio Moro foi parcial na condução do processo do tríplex do Guarujá, que resultou na condenação do ex-presidente Lula, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), se pronunciou nas redes sociais sobre o resultado e afirmou que a “Lava-Jato jamais poderá merecer o perdão da História”.

Na mensagem publicada no Twitter, Lira reconheceu a importância da Operação Lava-Jato no combate à corrupção sistêmica, mas classificou como “lamentável” o “Estado Policial” criado na condução das investigações.

Ex-ministro da Saúde e possível candidato à Presidência, Luiz Henrique Mandetta criticou o resultado proferido pela Segunda Turma. Segundo ele, a revisão do caso se trata de uma “operação abafa em curso” e ironizou: “Daqui a pouco teremos que indenizar essa quadrilha”.

Aliados do ex-presidente Lula também utilizaram as redes sociais para comemorar a decisão contrária a Sergio Moro. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) afirmou que é “um dia histórico” e que o “herói foi desmascarado”, em uma referência ao ex-juiz. O petista também falou sobre Bolsonaro: “O falso Messias será o próximo”.

DILMA FALA EM ATENTADO

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), afirmou que o Supremo “encerrou um capítulo triste da História”. De acordo com ele, os atos de Sergio Moro são “nulos e imorais”.

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) também comemorou a decisão sobre “o maior atentado contra a Justiça cometido na História do Brasil”.

No texto publicado pela ex-presidente nas redes sociais, Dilma defendeu que Sergio Moro “comandou um grupo de procuradores que abusavam de seu poder para fabricar acusações” e afirmou que o estrago é “irreparável”.