O Globo, n.32001 , 19/03/2021. País, p.4

 

Pressão com lei da ditadura

Aguirre Talento

Bernardo Mello

Guilherme Caetano

19/03/2021

 

 

Polícias agem contra críticos de Bolsonaro

Com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), as forças policiais têm se mobilizado para reprimir críticos do presidente Jair Bolsonaro. Nos últimos três dias, a Polícia Civil enquadrou o youtuber Felipe Neto, no Rio; a Polícia Federal (PF) abriu investigação contra um sociólogo no Tocantins; e ontem a Polícia Militar (PM) prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa de protesto em frente ao Palácio do Planalto. Em comum, os três contêm críticas ao presidente devido à condução do combate à pandemia de Covid-19. Em dois casos, Bolsonaro foi chamado de “genocida”.

Especialistas da área do Direito avaliam que a conduta das autoridades é um atentado à liberdade de expressão e que as manifestações contrárias ao presidente não são um risco à sua integridade física, o que justificaria o uso da LSN.

Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, o instrumento jurídico, uma herança da ditadura militar, tem sido utilizado com frequência para enquadrar seus opositores, em alguns casos solicitado pelo ministro da Justiça, André Mendonça.

Na faixa utilizada pelos manifestantes ontem, Bolsonaro era chamado de genocida. Havia também uma cruz vermelha, símbolo do SUS, transformada em suástica, associando o presidente ao regime nazista. O grupo que fez o protesto foi encaminhado à PF. Após prestarem depoimento, quatro dos cinco manifestantes foram liberados — um, que tinha contra ele um mandado de prisão expedido, ficou preso.

Um dos detidos, Rodrigo Grassi Cademartori, no depoimento a que O GLOBO teve acesso, afirmou que estava exercendo seus direitos de liberdade de expressão e manifestação.

“O próprio declarante escreveu na faixa a frase ‘Bolsonaro genocida’, assumindo total responsabilidade por esse ato, até porque acredita que ao escrever isso estaria no exercício de seus direitos constitucionais, de livre expressão e manifestação”, diz trecho do documento.

O termo “genocida” tem sido usado por opositores de Bolsonaro que condenam sua gestão no combate à pandemia, que já matou mais de 280 mil pessoas no país.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Para juristas ouvidos pelo GLOBO, o enquadramento das críticas a Bolsonaro na LSN viola a liberdade de expressão e o Código Penal, que já prevê como agravante, nos casos de crimes contra a honra, o fato de serem cometidos contra o presidente da República. Segundo o advogado Belisário dos Santos Jr., membro da Comissão Arns e da Comissão Internacional de Juristas, a LSN só poderia ser aplicada em situações cuja gravidade “lese ou exponha a risco de lesão” os chefes de Poderes, e não para coibir críticas ao presidente .

A prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), com base na LSN, por gravar um vídeo com ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) é um exemplo, de acordo com Belisário, de um “discurso de pessoa de alta posição política” com capacidade de influenciar grupos que já se manifestaram violentos — o que configura, portanto, perigo real a instituições e seus representantes. Já a classificação do presidente como “genocida” não poderia ser enquadrada na mesma legislação porque, segundo o jurista, não se constitui em risco à ordem institucional, mas sim numa crítica com “expressão forte, não necessariamente técnica ”, eques e refere a uma “conduta irresponsável”.

—Se o presidente não puder ser criticado, a democracia deixa de existir. Se a ofensa não representa perigo real, o máxi moque poderias erf ei toé um processo por calúnia, dentro da legislação comum, e não pela LSN —afirma Belisário.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, classificou como “violência” as prisões de manifestantes ontem em Brasília com base na LSN. Ele afirmou que estudará junto à entidade uma forma de reagir ao que chamou de “escalada” do uso desta legislação. A OAB já havia pedido, na quarta-feira, uma audiência com o chefe da Polícia Civil do Rio para tratar da intimação feita a Felipe Neto, que chamou Bolsonaro de “genocida” nas redes sociais. Santa Cruz avalia que o ato foi uma “utilização das forças policiais para perseguições político-ideológicas”.

— Este governo, com viés militarista e autoritário, parece incapaz de lidar com as críticas. Críticas, aliás, que eles sempre utilizaram com liberdade contra quem eles entendem serem seus oponentes. E agora recorrem a ferramentas de perseguição eà própria forçapolicial par acalar os críticos —disse Santa Cruz.

“PEQUI ROÍDO”

Entre os casos recentes em que a LSF foi invocada, está o do sociólogo Tiago Costa Rodrigues, do Tocantins, que pagou para instalar outdoors com críticas a Bolsonaro em Palmas. Umas das mensagens afirmava que o presidente “vale menos que um pequi roído”, gíria local que usa o nome de um fruto do cerrado para fazer uma associação a quem não tem valor. Ele prestou depoimento à PF do Tocantins, após Mendonça acionar a corporação, e espera que o inquérito seja arquivado.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Liminar suspende investigação contra Felipe Neto

19/03/2021

 

 

Youtuber, que chamou o presidente de 'genocida', lança serviço gratuito para defender processados por críticas ao governo na internet

O youtuber Felipe Neto anunciou, ontem, o lançamento do movimento Cala a Boca Já Morreu, para garantir a defesa gratuita de pessoas investigadas por criticarem o governo Bolsonaro na internet. A articulação ocorre no mesmo dia em que a Justiça do Rio concedeu liminar para suspender investigação contra Neto, iniciada na segunda-feira pelo delegado Pablo Sartori, titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), a pedido do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) após o youtuber ter chamado o presidente de “genocida”.

Integrada inicialmente pelos advogados Augusto de Arruda Botelho, Davi Tangerino e Beto Vasconcelos, a frente vai atuar no âmbito de ações criminais, cíveis e administrativas.

“O Cala a Boca Já Morreu será um grupo da sociedade civil que vai lutar contra o autoritarismo e que será movido pelo princípio de que quando um cidadão é calado no exercício do seu legítimo direito de expressão, a voz da democracia se enfraquece. Não podemos nos calar. Não podemos deixar que nos calem e não vamos”, afirmou o youtuber, em nota.

Após chamar Bolsonaro de “genocida” no Twitter, Neto foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN) e deveria comparecer à DRCI para prestar depoimento ontem. Mas a a Justiça do Rio suspendeu liminarmente as investigações sobre a fala do influenciador, e ele não precisou ir.

CONDUÇÃO EQUIVOCADA

Na decisão, a juíza Gisele Guida de Faria afirma que, pelo enquadramento na LSN, não cabe à Polícia Civil do Rio dar o encaminhamento às investigações, mas sim à Polícia Federal. Ela destaca, ainda, que, por se tratar de “crime praticado contra a honra do Presidente da República”, a apuração somente poderia ter se iniciado a partir de provocação do Ministério Público, de autoridade militar responsável pela segurança interna ou pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública e, portanto, não poderia ter sido instaurada por iniciativa do vereador Carlos Bolsonaro. Neto celebrou a decisão, que avaliou como sinal democrático:

— Eu sempre confiei nas instituições, e essa decisão só confirma que ainda vivemos em uma democracia, em que um governante não pode, de forma totalmente ilegal, usar a polícia para coagir quem o critica.

Os serviços de defesa do “Cala a Boca Já Morreu” poderão ser utilizados por qualquer investigado que não tiver acesso a serviços de advogados. Eles poderão requisitar assistência legal a partir da página inicial do site do projeto, ainda a ser lançada.