O Globo, n.32000 , 18/03/2021. Mundo, p.19

 

Insumos retidos

André Duchiade

18/03/2021

 

 

Protecionismo ameaça cadeias globais de produção de vacinas

Enquanto a demanda global por vacinas contra a Covid-19 ultrapassa em muitas vezes a atual oferta de imunizantes, as práticas protecionistasadotadas por governos para obterem os estoques disponíveis têm sido abrangentes. Além das próprias doses, ingredientes e itens necessários à produção e distribuição são retidos por Estados nacionais, de frascos a nanopartículas de lipídios. Produtores globais protestam contra as práticas, que podem pôr em risco as cadeias globais de suprimentos.

Adar Poonawalla, presidente do Instituto Serum da Índia, o maior centro produtor de vacinas do mundo, é um dos críticos mais recorrentes do protecionismo. Segundo ele, o “nacionalismo das matérias primas” já levou muitos institutos e fabricantes, incluindo oque ele preside, a descumprirem prazos e compromissos. Seu principal alvoéa decisão americana de barrara exportação de matérias-primas.

—Existem muitas bolsas, filtros e outros itens essenciais de que os fabricantes precisam — afirmou Poonwalla em um painel de discussão do Banco Mundial.—Agora os EUA decidiram invocara Leide Defesa, na qual há uma sub cláusula que impede a exportação de matérias-primas cruciais.

Ao contrário do ano passado, quando governos explicitamente restringiram a exportação de itens médicos, até o momento apenas a União Europeia adotou um regime formal de controle das remessas de vacinas. No dia 30 de janeiro, entrou em vigor um mecanismo que permite que países do bloco retenham doses se o envio “apresentar uma ameaça ao cumprimento do Acordo de Compra de Ativos (APA) firmado com as produtoras”.

Até agora, o dispositivo foi invocado apenas pela Itália, que no começo do mês travou uma remessa de 250 mil vacinas da AstraZeneca destinadas à Austrália. Em uma entrevista coletiva ontem, a presidente da Comissão Europeia, Ur sula von derLeyen, ameaçou bloqueara exportação de todas as vacinas produzidas em países do bloco para fazer frente à “crise do século”.

Segundo um relatório do Banco Mundial, a maioria dos países tem recorrido a “formas mais obscuras de controle de exportação”. As práticas podem envolver acordos de compra antecipada com cláusulas de prioridade, atrasos não explicados ou a retenção de insumos. “Esta obscuridade torna o monitoramento perfeito da política comercial do parceiro impossível eé uma receita para a instabilidade ”, diz o documento.

Em um comunicado, a Federação Internacional de Fabricantes e Associações F arma cê ut icas(IFP MA) disseque desafios“estão sendo observados em todas as etapas de fabricação de vacinas, que incluem bolsas de biorreator, sistemas descartáveis, meios de cultura de células, filtros, esterilização gama , frascos etc”.

Um dos países mais criticados são os Estados Unidos — que, segundo o Banco Mundial, são os maiores exportadores mundiais de ingredientes e itens de vacinas. Joe Biden e Donald Trump invocaram a Leide Produção de Defesa, ordenando que indústrias direcionassem esforços para expandira fabricação. Os subsídios concedidos a produtores parecem ter sido condicionados a prioridade de acesso. A exportação de itens como seringas e equipamentos de produção necessita de autorização.

Há vários relatos de que isso tem gerado desequilíbrios nas cadeias de produção internacionais. Nesta semana, Mahima Datla, presidente da companhia farmacêutica indiana Bio logical E, disse ao Financial Times que o protecionismo americano “não só dificultará a expansão das vacinas contra aC ovid,m as, tornará a fabricação de vacinas comuns extremamente difícil ”. Martha Delgado, da Chancelaria do Méxcio, também disse que laboratórios mexicanos não estão recebendo filtros .

O domínio da cadeia de produção é considerado um dos fatores para a vacinação americana estar tão avançada. Peter Berman, professor de Saúde Pública na Universidade de British Columbia em Vancouver, observa que, apesar de EUA e Canadá terem feito compras antecipadas, mais de 21% dos americanos já recebeu ao menos uma dose, índice de 7% entre canadenses.

—A despeito das compras antecipadas, o Canadá não produz estas vacinas para a Covid, e os EUA, sim. Quando chegou a hora de expandira vacinação, houve uma competição, e o Canadá descobriu que seu suprimento estava atrasado —disse Berman.

Oficialmente, o governo americano diz que vacinará primeiro a sua população, tendo feito investimentos para isso. O país reaproveitou instalações existentes e assumiu riscosa o investir bilhões para acelerar o desenvolvimento de vacinas. Na semana passada,a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, disse que o “presidente está profundamente focadona questão da expansão da vacinação global, da fabricação e entrega, que serão cruciais para acabar coma pandemia ”.

—Os EUA expandiram significativamente sua capacidade de produção. Em poucos meses, o país terá terminado a sua vacinação, e as doses adicionais irão para outros países — disse Tinglong Dai, professor da Escola de Negócios da Universidade John Hopkins.

EQUILÍBRIO INCERTO

Além dos EUA, há relatos de protecionismo por parte de China e da Índia, que atrasaram a entrega de doses dando explicações pouco claras. O Brasil foi afetado por atrasos de insumos vindos dos dois países, posteriormente revertidos. Autoridades das duas nações asiáticas já declararam que buscam equilibrara demanda interna coma externa. Na Índia, o premier Narendra Modi sofre pressão por ter exportado quase o dobro do número de doses das que foram aplicadas internamente.

Segundo Prashant Yadav, professor especialista em suprimentos de saúde do Instituto Europeu de Administração de Empresas( In se ad ), os bloqueios de alguns países podem afetar planos de novas unidades de produção de vacinas.

— No futuro, as fabricantes pensarão em lugares que não apresentem riscos para suas novas fábricas—disse Yadav.

Procurados, os dois fabricantes brasileiros de vacinas contra a Covid-19 —o Instituto Butantan e o instituto BioManguinhos/Fiocruz —disseram não enfrentar problemas pela falta de insumos. As instituições constroem novas fábricas, cujas primeiras doses produzidas com ingredientes domésticos devem ser entregues até o fim do ano. Segundo Maurício Zuma, diretor de Bio-Manguinhos, a Fiocruz monitora a escassez de itens.

— Estamos atentos à possibilidade de escassez mundial de insumos, mas até o momento não identificamos esse risco em nossas aquisições.