O Globo, n.31998 , 16/03/2021. Sociedade, p.11

 

Países europeus suspendem uso da vacina de Oxford

Audrey Furlaneto

16/03/2021

 

 

Decisão preventiva foi tomada após o registro de casos de trombose venosa e embolia pulmonar entre pessoas que receberam a fórmula. Fabricante garante segurança, e OMS discutirá suspensão, mas recomenda que vacinação prossiga

Em meio à preocupação sobre reações adversas em pessoas vacinadas, Alemanha, França, Espanha, Itália, entre outros países da Europa, decidiram suspender o uso da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford com o laboratório AstraZeneca. A decisão seria uma medida preventiva após o registro de casos de trombose venosa e embolia pulmonar entre pessoas que receberam a fórmula.

Os quatro países se somam a uma lista de nações europeias que interromperam o uso do imunizante por precaução. Irlanda e Holanda tomaram a medida no domingo. Antes ainda, na semana passada, Áustria, Bulgária, Dinamarca, Estônia, Islândia, Letônia, Lituânia, Luxemburgo e Noruega já haviam anunciado a paralisação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) convocou seu grupo de especialistas para uma reunião hoje, com o objetivo de analisar a segurança da vacina, mas afirmou que os países devem continuar a administrá-la por enquanto. Já a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) defendeu que os benefícios da vacina ainda superam os riscos e marcou uma reunião sobre o imunizante para a quinta-feira.

No Brasil, a vacina da AstraZeneca é a principal aposta do governo federal e uma das duas usadas na vacinação contra a Covid-19. Os anúncios da suspensão na Europa não interromperam seu uso no país. A Anvisa informou que solicitou mais detalhes às autoridades internacionais sobre possíveis eventos adversos relacionados à vacina.

Em reação à decisão dos países, a AstraZeneca afirmou ter feito uma revisão detalhada de dados dos 17 milhões de vacinados com o produto na União Europeia e no Reino Unido. O levantamento, segundo a empresa, “não mostrou evidências de um risco aumentado de embolia pulmonar, trombose venosa profunda ou trombocitopenia, em qualquer faixa etária, sexo, lote ou em qualquer país em particular”. Os dados, ainda de acordo com a AstraZeneca, mostram que foram registrados 15 eventos de trombose venosa profunda e 22 de embolia pulmonar entre os 17 milhões que receberam a vacina, segundo informações compiladas pela empresa até o dia 8 de março.

Em nota, o laboratório afirmou que se trata de um “número muito menor do que seria esperado que ocorresse naturalmente numa população deste tamanho”.

Coordenadora dos testes da AstraZeneca no Brasil e diretora do grupo de vacinas de Oxford no país, Sue Ann Costa Clemens lembra ainda que, entre as 60 mil pessoas que receberam o imunizante ainda durante os estudos em todo o mundo, a incidência de casos de trombose e embolia também foi menor do que a observada normalmente na população.

—A suspensão do uso pelos países é uma medida de ultraprecaução, mas não é sustentada pelos dados que temos — afirma Clemens.

— É normal que na vacinação em massa apareçam mais reações adversas, que não foram vistas nos estudos clínicos. O que ocorre é que, no contexto da pandemia, a vacinação se deu de forma muito rápida e massiva. São mais de 17 milhões de vacinados em três meses. É natural que se observem reações mais rapidamente, mas é preciso traçar comparativos com a incidência dos casos observados na população em geral.

COMITÊS ‘SEM EXPERIÊNCIA’

Clemens lembra ainda que a vacina teve os dados de segurança e eficácia avaliados e aprovados pela agência regulatória da União Europeia. Já os comitês de vacinação dos países europeus, completa ela, são menos experientes, sem tradição em planos nacionais de imunização.

—Só na União Europeia são mais de 15 regimes diferentes de vacinação, e as coberturas vacinais não são das melhores. A falta de experiência, somada ao fato de várias vacinas serem aprovadas para uso emergencial ao mesmo tempo, num ambiente de vacinação em massa, faz com que os líderes desses países devam mesmo ser muito cautelosos — diz.

Ela salienta que o comitê da Alemanha, em fevereiro passado, chegou a suspender o uso da vacina da AstraZeneca em idosos com mais de 65 anos, alegando que não dispunha de dados de eficácia nessa faixa etária. A decisão foi seguida pela França, mas ambos os países voltaram atrás na sequência, com a informação de que, no Reino Unido, o imunizante apresentou 80,4% de eficácia entre pessoas com 88 anos com apenas uma dose.

— É importante que os brasileiros continuem se vacinando. As agências regulatórias e as empresas estão monitorando os dados de segurança —ressaltou Clemens.

Para o infectologista Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, eventos adversos em campanhas de vacinação em massa são esperados. Entre os vacinados estão pessoas idosas, com doenças crônicas e que têm mais chances de terem doenças com ou sem vacina.

— Eventos tromboembólicos são razoavelmente comuns em pessoas idosas. É preciso avaliar caso a caso e, também, observar populacionalmente se a incidência da doença entre os vacinados supera a incidência na população em geral —diz Kfouri.

O especialista defende que, embora os casos de reação adversa precisem ser investigados com cautela, o Brasil não deve seguir a posição dos países europeus.

— Com mais de 2 mil pessoas morrendo por dia no Brasil, não faria o menor sentido parar de vacinar. Para os países europeus, que têm meia dúzia de vacinas diferentes disponíveis, é possível suspender até que dados novos sejam compilados. Agora, no Brasil, seria uma atitude anti-saúde proibir uma vacina por suspeita de evento adverso raro em meio a um momento terrível da pandemia.

A microbiologista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e colunista do GLOBO, destaca que, em seus comunicados sobre a suspensão do uso da vacina, os países não apontam relação de causa e efeito entre o uso da vacina e os eventos tromboembólicos, apenas informam que a medida é preventiva.

— Infelizmente, o ser humano é bastante equipado para enxergar padrões e se assustar com eles. A gente está vacinando pessoas e, de repente, pessoas vacinadas desenvolveram coágulos. Mas quantas não vacinadas desenvolvem esse quadro normalmente? Essa é a pergunta que precisamos fazer: as pessoas vacinadas têm uma taxa significativamente maior de formação de coágulos, embolia e trombose com relação ao restante da população? A resposta é não —diz Pasternak.