O Globo, n.31997 , 15/03/2021. Sociedade, p.8

 

Legado de Pazuello

Rafael Garcia

Bruno Alfano

15/03/2021

 

 

Derrota do general na gestão da pandemia tem assinatura de Bolsonaro, dizem especialistas

Quando o presidente Jair Bolsonaro impediu o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, de assinar contrato para compra de vacinas do Butantan, em outubro, o general respondeu em resignação: “Um manda e outro obedece.” Segundo especialistas, o que deve definir o desempenho de seu sucessor é se essa relação autoritária continuará pautando a pasta.

Pazuello, que assumiu o cargo quando o Brasil tinha 15 mil mortos por Covid-19, tem a substituição em negociação agora, e pode sair com a epidemia acumulando 278 mil óbitos. Essa escalada se deu em um cenário de atraso na entrega de doses de vacinas contratadas e, agora, do colapso dos sistemas de saúde em várias cidades.

Mesmo criticando o desempenho do ministro, sanitaristas ouvidos pela reportagem afirmam que é cedo para saber se a saída do general de cena terá efeito positivo.

—Não sabemos se uma troca de ministro agora será mais um factoide político, uma pista falsa, ou se o presidente de fato foi convencido de que ele deve dar uma resposta real à pandemia e implementar um programa de imunização decente—afirma Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Para ela, a interferência política em decisões técnicas da pasta se dá pela convicção de Bolsonaro de que a pandemia seria controlada por disseminação do vírus, em vez de contenção, para formação rápida de imunidade coletiva por contágio, não vacina.

—Desde abril do ano passado, colhemos mais e mais evidências de que essa estratégia foi implementada —afirma.

Nesse contexto, a sanitarista da USP afirma que não faz sentido avaliar a gestão Pazuello apenas por critério de “competência”, quando na verdade o general teria cumprido à risca a missão que o Planalto lhe confiou.

Marcou a gestão de Pazuello seu apoio incondicional a terapias ineficazes contra Covid-19, que o ministério qualificou como “tratamento precoce”, como a cloroquina e a ivermectina. Ao mesmo tempo, o governo federal se eximia de coordenar as ações de distanciamento social e vigilância epidemiológica para conter a pandemia.

 

FALHA LOGÍSTICA

Para o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, apesar de ter atuado sob interferência permanente do Planalto, Pazuello não teve êxito nem mesmo quando viu algum espaço para trabalhar políticas corretas.

—Esse general que ocupa o ministério prometeu um plano de testagem e outro de vacinação. Não entregou nenhum deles. Também se apresentou como especialista em logística, o que mostrou não ser —afirmou Padilha.

— No meio de uma pandemia como essa, trocar dois ministros e escolher como terceiro alguém que não tem qualquer experiência sobre o SUS mostra a irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro.

O epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP, destacou também como marco da gestão Pazuello os erros logísticos que levaram ao esgotamento do estoque de oxigênio hospitalar em Manaus. Para ele, a gestão “não teve nenhum acerto”.

— O que se passou no ministério não dá para descrever. Foram erros e erros. E situações criminosas, como o que aconteceu em Manaus. O Pazuello atrasou tudo o que podia, não distribuiu testes, atrasou a vacinação… —afirmou.

Segundo Lotufo, o próximo ocupante do cargo terá de fazer uma reformulação geral no quadro de funcionários do ministério.

— Quem vier a assumir o ministério precisa eliminar todo o quadro de militares, que não conhecem nada de saúde pública e instalar pessoas que conheçam a área.

Para a sanitarista Ligia Bahia, professora da UFRJ, caso Pazuello deixe agora o cargo, será difícil criar narrativa para uma saída honrosa.

— Vai ser o reconhecimento de uma derrota, e Pazuello é agora um general derrotado — diz a professora.

— Mas não adianta trocar um ministro e não trocar a política que levou a esse número elevado de casos. Não dá para ignorar que o governo Bolsonaro é a causa de termos um ministro como Pazuello.

 

CENÁRIO ALTERADO

Outros especialistas, porém, apontam que agora o governo federal está pressionado por governadores para assumir mais responsabilidade, e Bolsonaro vê queda nas pesquisas de popularidade, o que poderia levá-lo a dar mais liberdade ao próximo ministro. Isso é o que considera Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência e especialista em gestão pública.

—Se nada for feito nas ações que a gente sabe que resolvem o problema, o Brasil caminha para um buraco muito grande não só sanitário, mas também econômico, financeiro e diplomático, porque hoje a gente já é pária do mundo — diz. — É incerto saber o que vai acontecer, mas provavelmente a gente vai ter um ministro melhor que o Pazuello.

Para Deisy Ventura, da USP, a saída de Pazuello pode viabilizar uma mudança de abordagem com relação à pandemia, admitindo que não se pode mais lidar com ela passivamente.

— É difícil dizer se hoje o presidente ainda acredita nisso, acho que ele não admitiria dizer que foi tão mal assessorado. A estratégia do governo federal foi feita por pessoas tecnicamente incapazes, que não conhecem saúde pública, infectologia ou epidemiologia e afrontam as autoridades sanitárias constantemente.

Ontem, em meio à especulação sobre a saída de Pazuello, o Fórum Nacional de Governadorespediuqueogoverno federal baixe medidas restritivas de locomoção da população para conter a pandemia e regulamente a lei que permite a estados e municípios comprarem vacinas.