O Globo, n.31996 , 14/03/2021. Mundo, p.38

 

Guerra faz 10 anos com Síria fatiada e longe da paz

Thayz Guimarães

14/03/2021

 

 

Conflito que matou mais de 387 mil pessoas e espalhou 5,6 milhões de refugiados pelo mundo na prática já foi vencido por Damasco e seus aliados, mas jogo de potências regionais e globais não permite acordo

Mais de 5,6 milhões de refugiados, 6,7 milhões de deslocados, 387 mil mortos, 200 mil desaparecidos e US$ 1,2 trilhão em perdas econômicas são o custo da guerra na Síria até o momento, de acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), do Observatório Sírio dos Direitos Humanos (EBC) e da ONG Visão Mundial. Desde 2011, o regime de Bashar al-Assad e grupos rebeldes se enfrentam violentamente no território sírio, na maior parte do tempo amparados por potências estrangeiras. Um cessar-fogo frágil está em vigor desde o ano passado, mas o fim do conflito ainda é uma realidade distante, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO.

— Em várias partes da Síria já não há mais conflito armado, mas, como também não há um acordo político entre as partes beligerantes, a situação está bloqueada — afirma Fabrizio Carboni, diretor regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para o Oriente Médio. —Em Homs, que foi um dos epicentros da guerra, os ataques pararam há quatro ou cinco anos, mas, toda vez que vou para lá, tenho a sensação de que os conflitos terminaram ontem, porque nada mudou. Os bairros antigos continuam totalmente destruídos.

SEM PÃO E SEM LUZ

Estimativas da organização Human Rights Watch (HRW) apontam que mais de 80% dos 16,91 milhões de habitantes da Síria hoje vivem abaixo da linha da pobreza, com 60% das crianças passando fome diariamente, segundo a ONG britânica Save the Children. O preço da cesta básica é 33 vezes mais caro do que a média dos cinco anos anteriores à guerra, de acordo coma Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura( FAO ). Em 2019, o próprio ministro da Eletricidade afirmou que 70% das subestações da rede elétrica e linhas de abastecimento de energia estavam fora de serviço.

— A economia da Síria foi devastada por anos de guerra e décadas de corrupção desenfreada —afirma Dareen Khalifa, analista sênior do centro de estudos de conflitos International Crisis Group.

— Infraestrutura vital e bairros urbanos inteiros foram destruídos como parte de uma estratégia de guerra deliberada, aplicada por Damasco, bem como por seus aliados russos, para esmagar oponentes. Mas sanções impostas pelos EUA também estão impedindo que outros países invistam na Síria, o que alimenta a miséria dos mais vulneráveis, que são os sírios comuns, sem atingir nenhum objetivo político declarado.

Hoje, a Síria compreende quatro zonas distintas de influência, cada uma apoiada por uma potência estrangeira. Grande parte do país, incluindo as principais cidades, é controlada pelo regime de Assad, com apoio da Rússia e do Irã.

Os curdos, apoiados pelos EUA e aliados, controlam o Nordeste, onde estão concentradas as maiores reservas de recursos naturais da Síria, especialmente gás e petróleo. Combatentes apoiados pela Turquia controlam uma área a oeste de Aleppo, mais a faixa de fronteira que vai de Tel Abyad até Ras alAyn, no Nordeste. O Noroeste é controlado por um grupo jihadista chamado Hayet Tahrir al Sham (HTS, ou Organização pela Libertação do Levante).

—Há um cessar-fogo de fato em todo o país desde março de 2020, quando a Turquia interveio militarmente para impedir uma ofensiva de um ano apoiada pela Rússia em Idlib, no Noroeste da Síria. No entanto, e apesar da cessação das hostilidades ao longo do ano passado, o status quo é muito frágil e o cessar-fogo é violado diariamente por quase todas as partes —afirma Khalifa. Para Fabrizio Carboni, além das perdas materiais, que são evidentes, o conflito também causada nos invisíveis aos sobreviventes, sobretudo psicológicos.Em um paí sonde mais da metade da população tem menos de 25 anos, uma pesquisa realizada pelo CICV com 1.400 jovens sírios revela que 54% disseram sofrer de distúrbios do sono, 73%, de ansiedade, 56%, de depressão, 45%, de solidão, e 62%, de frustração e angústia.

JUVENTUDE PERDIDA

O relatório ainda afirma que quase um em cada dois jovens (47%) perdeu um parente próximo ou amigo no conflito, um em cada seis contou que pelo menos um de seus pais foi morto ou ficou gravemente ferido, 12% ficaram eles mesmos feridos nos confrontos, e 62% disseram que precisaram fugir de casa.

— Uma geração de jovens sírios está pagando um preço muito alto pela guerra— afirma Carboni.

— À medida que se tornam adultos, eles aspiram ao mesmo que gerações anteriores: querem trabalhar, levar uma vida segura, poder cuidar da família. Mas não têm as mesmas oportunidades. Na Síria, que já teve uma taxa de matrícula de quase 93%, hoje quatro em cada dez jovens tiveram que interromper sua educação porque foram obrigados a fugir, de acordo com o relatório “Uma década de perdas”, da organização Visão Mundial. Cerca de 2,4 milhões de crianças também estão sem estudar, enquanto um terço das escolas do país foi destruído ou confiscado por combatentes, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Da mesma forma, o sistema de saúde do país está em frangalhos: em meio à pandemia da Covid-19, apenas 58% dos hospitais continuam funcionando, e com um número bastante reduzido de profissionais de saúde, já que 70% deles fugiram da Síria na última década, segundo o Acnur.

—Depois de uma década de conflito, em meio a uma pandemia global e enfrentando um fluxo constante de novas crises, a Síria saiu da primeira página— disseosecretário-geral da ONU, António Guterres, em uma entrevista coletiva na última quarta-feira. —E ainda assim, a situação continua sendo um pesadelo vivo.

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Assad venceu e governa um país morto

Guga Chacra

14/03/2021

 

 

Bashar al-Assad, dez anos atrás, achava que seria imune à Primavera Árabe porque equivocadamente imaginava ser um ditador diferente. Parecia se sentir com síndrome de impostor no papel de autocrata. Médico, dirigia o próprio carro, jogava videogame e era casado com uma exbanqueira de Londres. Nada a ver, na visão dele, comum Mu barak ou umKa da fi. Estava errado. Assad sempre foi um ditador como qualquer outro, apesar do verniz mais moderno. Perseguia opositores, censurava a imprensa e controlava o país como se fosse sua propriedade pessoal. Quem conhece o Líbano sabe bem dos crimes cometidos pelo regime sírio em Beirute ao longo de décadas de presença militar. Assad também achava que a Síria não teria guerra civil. Os sírios prefeririam a estabilidade da ditadura a vera nação destruída como os vizinhos Líbano e Iraque, que foram palcos de sangrentas guerras civis. Mais uma vez, As sades tava errado. Aguerra deixou centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados. Mas Assad estava certo em duas coisas. Primeiro, precisava sustentar seus pilares de poder — as minorias religiosas (alau ita, cristã e drusa ), a tradicional elite sunita de Damasco e Aleppo, o Partido Baath, as forças especiais do Exército e o apoio de Rússia, Irã e Hezbollah. Conseguiu gabaritar. Em segundo lugar, Assad precisava evitar que surgisse uma oposição viável aseu regime. Desta forma, conteria uma intervenção militar dos EUA, ainda traumatizados pela Gu errado Iraque. Conseguiu a ose concentrar inicialmente em destruir os opositores mais laico spa raque só sobrassem osj ih a distas. Indiretamente, teve a ajudado governo Oba ma, que, ao armar os supostos rebeldes, viu este armamento cair nas mãos dos extremistas.

O resultado foi um conflito entre a ditadura sanguinária de Assad e uma oposição cada vez mais jihadista. Para alguns, era menos terrível um ditador iguala outros do mundo árabe doque grupos ligadosàal-Qae da. Muitos, diante dessas alternativas, se tornaram refugiados em outros países. O Estado Islâmico foi uma ameaça a todos, especialmente aos curdos, que mantinham uma relação de neutralidade com Assad. Passados dez anos, Assad ganhou o conflito. Controla toda a Síria“que interessa ”, incluindoDamasco, Aleppo,Ho ms, H ama e acosta mediterrânea. A oposição jihadista controla a província de Idlib, na fronteira coma Turquia. Há algumas áreas nas mãos dos curdos no Leste e no Norte do país. Damasco está intacta, mas com os subúrbios destruídos. Seria como se toda a Baixada Fluminense houvesse sido destruída. Aleppo teve regiões arrasadas e enfrenta dificuldades para se reconstruir. Seria como se todo o Centro, a Zona Norte e Zona Oeste do Rio tivessem sido destruídos, mas coma Zona Sul, mais rica, relativamente normal. A economia do país desmoronou.Deu manação de classe média, virou uma nação pobre. Com o agravante do colapso econômico do vizinho Líbano, cujo avançado sistema bancário era usado pelo regime sírio. A Lei Ceasar do governo dos EUA impede investimentos estrangeiros na reconstrução. A Covid-19, claro, também contribuiu para o cenário ainda mais grave. Na prática, após uma década de guerra, Assad venceu para governar uma Síria morta, sem perspectiva de renascer.