Correio Braziliense, n.21122 , 24/03/2021. Política, p.2

 

De “herói nacional” a juiz suspeito

Renato Souza

24/03/2021

 

 

Segunda Turma do STF considera que Sergio Moro agiu com parcialidade no julgamento de Lula no caso do triplex do Guarujá. Com a decisão, processo volta à estaca zero. Sessão do colegiado é marcada por críticas duras de Gilmar Mendes a Nunes Marques

Por 3 votos a 2, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado à prisão no caso do triplex do Guarujá (SP). Os ministros entenderam que o então magistrado ultrapassou sua competência legal, impedindo que o petista fosse submetido a uma análise justa. A decisão foi tomada após a ministra Cármen Lúcia mudar o voto — ela havia rejeitado, em 2018, a tese de suspeição do então titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. O ministro Kassio Nunes Marques, que havia pedido vista do processo, votou, ontem, para manter a validade dos atos de Moro, mas foi vencido.

As decisões de Moro já estavam suspensas por determinação do ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo. Os processos tinham retornado à fase da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal. No entanto, com o entendimento da Segunda Turma, todos os atos processuais conduzidos pelo então juiz contra o petista voltam à estaca zero, e as investigações precisam ser retomadas da fase inicial, o que pode gerar prescrição das ações penais.

Os ministros avaliaram habeas corpus apresentado pela defesa de Lula, com base em atos processuais, que foram reforçados por mensagens obtidas pelo hacker Walter Delgatti Neto, e apreendidas pela Polícia Federal na Operação Spoofing.

Em um dos trechos das mensagens, Moro sugere para o procurador Deltan Dallagnol, então coordenador da força-tarefa de Curitiba, uma testemunha de acusação contra Lula. Em outras, comemoram quando a Justiça indefere pedidos de entrevista de jornalistas com Lula, quando ele disputava a eleição para presidente da República em 2018. Os diálogos foram publicados pelo site The Intercept, na série de reportagens conhecida como Vaza-Jato.

Na mudança do voto, ontem, Cármen Lúcia entendeu terem sido incluídos elementos novos que revelam perseguição contra Lula pelo poder público. "Neste caso, o que se discute, basicamente, é algo que, para mim, é basilar: todo mundo tem o direito a um julgamento justo e ao devido processo legal e à imparcialidade do julgador", sustentou.

De acordo com a ministra, o processo reduziu os direitos de defesa do então investigado. Ela citou a condução coercitiva contra Lula, sem que ele fosse ouvido com antecedência, e a quebra de sigilo do escritório de advocacia que fazia a defesa dele durante o curso do processo. A magistrada enfatizou que a decisão não se estende a outros réus da operação.

Já Nunes Marques afirmou que, por serem fruto de invasão de celulares, as mensagens da Spoofing não podem ser usadas em processo judicial. "São arquivos obtidos por hackers, mediante a violação dos sigilos ilícitos de dezenas de pessoas. Tenho que são absolutamente inaceitáveis tais provas. Entender-se de forma diversas, que resultados de tais crimes seriam utilizáveis, seria uma forma transversa de legalizar a atividade hacker no Brasil", emendou.

O presidente da Turma, ministro Gilmar Mendes, rebateu Nunes Marques. Chegou a dizer que, em muitos casos, a negativa de habeas corpus se deve à covardia. "Não se trata de ficar brincando de não conhecer de habeas corpus. É muito fácil não conhecer de um habeas corpus. Atrás, muitas vezes, da técnica de não conhecimento de habeas corpus, se esconde um covarde. E Rui (Barbosa) falava: o bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde", disparou. Além de Mendes e Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski votou a favor da suspeição de Moro. Edson Fachin e Nunes Marques foram contra. O ex-juiz não se pronunciou.

Direito

Em nota, a defesa do petista frisou que "Moro jamais atuou como juiz, mas, sim, como um adversário pessoal e político do ex-presidente Lula, tal como foi reconhecido majoritariamente pelos eminentes ministros da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal". "A decisão proferida hoje (ontem) fortalece o Sistema de Justiça e a importância do devido processo legal. Esperamos que o julgamento realizado hoje (ontem) pela Suprema Corte sirva de guia para que todo e qualquer cidadão tenha direito a um julgamento justo, imparcial e independente, tal como é assegurado pela Constituição da República e pelos tratados internacionais que o Brasil subscreveu e se obrigou a cumprir", destacou o comunicado, assinado pelos advogados Cristiano Zanin e Valeska Martins.

A decisão provocou repercussão no meio político. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) comemorou. "O Supremo Tribunal Federal decidiu fazer uma revisão histórica sobre a Lava-Jato. A operação jamais poderá ser contestada em sua coragem de enfrentar os poderosos, os grandes interesses, a corrupção sistêmica, mas o Estado policial, para o qual a Lava-Jato descambou em certos momentos, lamentavelmente, com suas parcialidades, seletividade e perseguições, jamais poderá também merecer o perdão da História", escreveu.
Já o deputado Marcel Van Hattem (Novo) criticou os ministros. "O que mais se temia aconteceu: Moro declarado suspeito e parcial no caso Lula (...). Placar de 3 a 2 a favor da impunidade no país. Quem se demonstra parcial, na verdade, é a maioria da 2ªTurma do STF", apontou, nas redes sociais.

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A parcialidade de Moro

Luiz Carlos Azedo

24/03/2021

 

 

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro foi considerado parcial no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso do triplex de Guarujá. Foi uma reviravolta no julgamento, que estava três a dois a favor do ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela Operação Lava-Jato. A ministra Cármen Lúcia, que já havia votado contra a suspeição no começo do julgamento, mudou seu voto ao final da sessão, acolhendo argumentos do presidente da Turma, ministro Gilmar Mendes, e do ministro Ricardo Lewandowski. Segundo ela, a atuação de Moro não foi imparcial, favoreceu a acusação e, portanto, houve um julgamento irregular.

Cármen Lúcia fez questão de ressaltar que a decisão se aplica apenas ao caso do triplex de Guarujá: "Não acho que o procedimento se estenda a quem quer que seja, que a imparcialidade se estenda a quem quer que seja ou atinja outros procedimentos. Porque aqui estou tomando em consideração algo que foi comprovado pelo impetrante relativo a este paciente, nesta condição". Embora se diga que a ministra foi pressionada por Mendes durante o julgamento, a magistrada já havia sinalizado que poderia rever seu voto, na sessão anterior da Turma.

O voto de Cármen Lúcia não se aplica automaticamente aos demais processos do ex-presidente Lula, mas, com certeza, será utilizado pela defesa do petista e também de outros réus da Lava-Jato condenados por Moro para anular processos. Tudo dependerá de novo julgamento no plenário do Supremo, que também precisa analisar a liminar do ministro Edson Fachin (o relator derrotado no caso de Moro) que anulou as condenações do ex-presidente Lula e mandou a Justiça Federal de Brasília refazer todo o processo. A decisão monocrática de Fachin é vista como uma maneira de restabelecer a elegibilidade de Lula e, ao mesmo tempo, salvar a Lava-Jato.

Candidaturas

Portanto, Lula foi beneficiado duas vezes: pela decisão monocrática de Fachin, que considerou Moro incompetente para julgar o petista; e, agora, pela Segunda Turma, que contamina as provas do processo ao considerar Moro parcial no julgamento. Se essas decisões forem mantidas pelo Supremo, Lula estará livre para concorrer à Presidência em 2022, e a Lava-Jato correrá o risco de ter dezenas de condenações anuladas. A surpresa no julgamento foi do novo ministro Nunes Marques, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, cujo voto foi a favor de Moro.

A repercussão da decisão foi imediata. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), inimigo declarado da Operação Lava-Jato, logo comemorou a suspeição de Moro. O ambiente político no Congresso é muito adverso para ex-juiz federal e a equipe de força-tarefa da Lava-Jato que realizou as investigações. No Palácio do Planalto, Lula é considerado o principal adversário de Bolsonaro, mas a candidatura de Moro é indesejada. Caso o ministro seja candidato, disputará votos no campo antipetista, o mesmo que Bolsonaro leva em conta para viabilizar a reeleição.

A propósito, a suspeição de Moro desgasta muito mais o Supremo na opinião pública do que a eventual candidatura do ex-juiz, que corre risco de passar de justiceiro a injustiçado. Não é nada mal, se realmente resolver se candidatar a presidente da República. Apesar de isolado politicamente, Moro continua sendo um ícone da luta contra a corrupção e um nome fortíssimo à Presidência. Dificilmente, será declarado inelegível pelo Supremo.

O ex-presidente Luiz Inácio da Silva é quem mais ganha com a decisão, porque reforça sua narrativa de que foi condenado sem provas, por um juiz sem isenção, com o objetivo político de afastá-lo do pleito de 2018. Mesmo assim, para grande parcela da opinião pública, o petista continua sendo o grande responsável pelo escândalo da Petrobras. Bolsonaro, supostamente, ganharia com o desgaste de Moro e a polarização com Lula, mas essa tese precisa ser combinada com o eleitor.