O Globo, n.31990 , 08/03/2021. Sociedade, p.10

 

Damares só gastou 1/4 da verba para violência contra mulher

Leda Antunes

Marcella Fernandes

08/03/2021

 

 

O gasto com ações de combate à violência contra a mulher realizadas pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) em 2020 foi a menor dos últimos dez anos. Levantamento feito pelo relatório da Celina em colaboração com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que a carteira liderada por Damares Alves pagou apenas 24,6% do total de R.120,8 milhões autorizados pelo Congresso para esse fim. No ano em que a pandemia contribuiu para aumentar os casos de violência contra a mulher, a execução financeira foi de apenas R $ 35,5 milhões.

Os dados foram obtidos por meio do Siga Brasil, Sistema de Informações sobre Orçamento Público Federal mantido pelo Senado. O cálculo contabiliza o valor efetivamente pago acrescido aos restos a pagar de exercícios anteriores retirados no exercício em análise. Dessa forma, é possível identificar o quanto de fato chegou à ponta, onde a mulher é atendida. Do orçamento autorizado de R.120,8 milhões, o MMFDH destinou R $ 117,7 milhões para ações de combate à violência contra a mulher, o maior valor desde 2015 - mas utilizou apenas R $ 29,7 milhões, somados a R 5 5,8 milhões de sobras a serem pagas.

Informado pelo relatório, o MMFDH informou, via assessoria de imprensa, que executa grande parte das políticas públicas por meio de convênios, termos de execução descentralizada, promoção e colaboração, com parceiros nas esferas pública e privada. “Uma vez formalizados os instrumentos de parceria, a execução dos objetos pactuados depende da expertise do parceiro escolhido. Assim, há uma diferença entre o valor comprometido e o valor pago. Os valores não pagos em um exercício financeiro são lançados em 'contas a pagar remanescentes' e transferidos para um ou mais exercícios subsequentes / futuros. Para o pagamento, é necessário que os objetos contratados / adquiridos sejam entregues e a entrega seja comprovada. ”

Quando o governo compromete um valor, ele faz uma reserva. Na prática, enquanto não é pago, o recurso não chega ao seu destino para que a política pública funcione. O montante comprometido pode ser perdido nos anos seguintes ou mesmo não ser pago em caso de violação do contrato pela outra parte.

- O governo considera compromisso como despesa executada. Do lado de quem recebe ou acompanha, fazemos uma leitura crítica disso - explica Carmela Zigoni, assessora política do Inesc. - Qualquer dinheiro não executado naquele ano significa que na ponta a mulher não acessou um serviço.

OS GASTOS CAÍRAM POR DOIS TERÇOS

A execução financeira para ações de combate à violência contra a mulher variou entre R 8 80 milhões e RR 105 milhões nos primeiros três anos da década. Em 2014, ainda no Governo Dilma Rousseff (PT), atingiu o maior patamar do período, somando R $ 193,3 milhões. Em 2017, primeiro ano completo sob o comando de Michel Temer (MDB), o gasto foi de R 6 66,8 milhões. Em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro (sem festa), a execução financeira para a área foi de R $ 47,8 milhões, caindo para RR 35,5 milhões em 2020.

Andntram nesta conta os programas orçamentários específicos para mulheres de 2011 a 2019. Em 2020, com o novo plano plurianual (PPA), o programa “Políticas para Mulheres, promoção da igualdade e enfrentamento da violência” passou a se chamar “proteção à vida, fortalecimento de família e defesa dos direitos humanos para todos ”e tornou-se mais abrangente. Com o auxílio do Inesc, o relatório selecionou as ações específicas para mulheres dentro dele.

A Casa da Mulher Brasileira recebeu apenas R 6 67,8 mil em 2020, embora a carteira liderada por Damares Alves contasse com R 6 65,4 milhões disponíveis para esta iniciativa. Em 2019, nada foi gasto no projeto que visa reunir num só local todos os serviços necessários ao acolhimento de mulheres em situação de violência, com atendimento psicossocial, jurídico e acolhimento às vítimas e seus filhos. Hoje, o país tem apenas seis casas em funcionamento e uma desativada. No início de 2020, a Damares prometeu a construção de 25 novas unidades até o final do prazo. Em fevereiro, a promessa foi renovada para 27 casas até o final de 2021.

Do que foi pago em 2020, desconsiderando o restante a pagar, 75% foi para o Ligue 180, Centro de Atendimento à Mulher. Outros 15% foram destinados à compra de alimentos para doação e, dos 10% restantes, a maior parte foi distribuída para municípios mato-grossenses. Valores menores foram para instituições de ensino, ONGs e lar de mulheres brasileiras. Nada foi pago ao Conselho Nacional pelos direitos das mulheres.

O reforço na divulgação do canal de atendimento foi a principal medida do governo para combater a violência doméstica que se agravou durante a pandemia - os feminicídios subiram 2% no primeiro semestre de 2020, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Desde o ano passado, as reclamações também puderam ser feitas via app, WhatsApp e Telegram. Apesar disso, nenhum valor adicional foi direcionado ao serviço.

PANDEMIA NÃO ALTERA IMAGEM

Mesmo os créditos extraordinários aprovados pelo Congresso por conta da crise da saúde não mudaram o quadro. Segundo dados obtidos pelo relatório via Lei de Acesso à Informação, dos R $ 45 milhões recebidos pelo MMFDH por meio da Medida Provisória 942/20, apenas R,8,2 milhões (18%) foram destinados a ações específicas para mulheres: distribuição de alimentos e uma campanha de conscientização.

Em outros países, os governos tomaram medidas extraordinárias para enfrentar o aumento da violência de gênero na pandemia. França, Espanha e Itália, por exemplo, transformaram quartos de hotel em abrigos temporários. Na Argentina, centros de aconselhamento foram instalados em supermercados e farmácias para que as vítimas pudessem fazer a denúncia sem retaliação dos agressores. Assim como no caso das medidas de isolamento social, estados e municípios têm implementado ações extraordinárias próprias. Em São Paulo e no Rio de Janeiro foram criados o Boletim de Ocorrência e o pedido de medida cautelar online.

- Com base no que estava acontecendo em outros países, e mesmo tendo mais tempo para planejar, o governo não tomou medidas especiais para proteger as mulheres - afirma a defensora Nalida Coelho Monte, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

A Política Nacional para Mulheres (SPM) executou o maior orçamento para a área nos últimos cinco anos. Segundo dados publicados no site do próprio ministério ““ foram R $ 123 milhões em ações de combate à violência e empoderamento da mulher em situação de vulnerabilidade social ”, e o valor representa“ 98% do orçamento autorizado para o ano ”.

Os dados obtidos via Lai pelo relatório mostram um cenário diferente. Na verdade, foram RR 123 milhões autorizados para a SPM em 2020, aliás o maior desde 2015, mas graças às emendas feitas pelos parlamentares. A dotação inicial prevista para a secretaria pelo governo federal era de apenas R $ 2,7 milhões, também a menor em dez anos. Do total autorizado, R $ 886 milhões, ou 70%, foram comprometidos e apenas R $ 7,3 milhões foram efetivamente pagos.

O relatório optou por não utilizar os dados exclusivos da SPM para análise principal porque algumas ações de proteção à mulher não estão sob a alçada do órgão, como o próprio Ligue 180, que desde a unificação está centralizado na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.

Embora a crise da saúde continue em 2021, a proposta orçamentária enviada ao Congresso prevê apenas RR 1,06 milhão para a casa da mulher brasileira. Mas isso pode mudar: o aumento de R $ 65,3 milhões liberados em 2019 para RR 120,8 milhões em 2020 foi determinado pelos parlamentares. Para 2021, já foram somados R $ 18,9 milhões em emendas para a defesa das mulheres, sendo RR 15,9 milhões de impostos - ou seja, o gasto é obrigatório.

Espera-se que o Congresso conclua a votação do orçamento em 24 de março. Até então, o governo só pode gastar 1/12 do que foi planejado por mês. Até o dia 4 de março, apenas R $ 120 mil foram pagos para ações específicas de enfrentamento à violência contra a mulher, e nada foi gasto na casa da mulher brasileira.

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Brasil registrou 105 mil denúncias em 2020, quase 290 por dia

08/03/2021

 

 

O Brasil registrou 105.671 denúncias de violência contra a mulher em 2020, sendo 72% referentes à violência doméstica e intrafamiliar. Foram quase 290 reclamações por dia ou uma a cada cinco minutos. Os números são Ligue 180 e Disque 100, canais de atendimento mantidos pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, e foram divulgados ontem em entrevista coletiva nas redes sociais do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).

Os números apresentados seguem uma nova metodologia desenvolvida pelo MMFDH, que impede a comparação com anos anteriores. O ouvidor nacional dos Direitos Humanos, Fernando Ferreira, explicou que a mudança ocorreu após a unificação dos dois canais de atendimento. Segundo ele, a mudança permitiu construir um banco de dados consolidado e melhorar o atendimento.

Os registros dos canais de denúncia indicam que a maioria das mulheres vítimas de violência se autodeclarou parda, tem entre 35 e 39 anos, ensino médio completo e renda de até um salário mínimo. A maioria dos suspeitos de agressão são homens brancos com idades entre 35 e 39 anos.

As denúncias de violência contra a mulher representam cerca de 30,2% do total de 349.850 denúncias recebidas em 2020.

No mesmo evento, foi lançada uma campanha de conscientização sobre a violência contra as mulheres, realizada pelo MMFDH em parceria com o Conselho Nacional de Justiça. Com o slogan “O amor não provoca medo”, ela informa em vídeo e banners que a mulher que se encontra em situação de “desvalorização” e “constrangimento” não está sozinha e pode buscar a rede de acolhimento.