O Globo, n.31989 , 07/03/2021. Sociedade p.14

 

Vacinação dupla de gripe e Covid é desafio inédito

Giuliana de Toledo

07/03/2021

 

 

Campanha contra influenza começa em abril e deve privilegiar crianças e gestantes para não coincidir com prioridades do coronavírus

O Brasil terá nas próximas semanas mais uma campanha de vacinação em curso: contra a gripe. Fazer essa imunização em massa, para 80 milhões de pessoas, em paralelo com outra de grande dimensão, a da Covid-19, é uma situação inédita no país e trará muitos desafios, avaliam especialistas ouvidos pela reportagem. A preocupação passa por logística, armazenamento, organização dos locais de aplicação, controle de períodos necessários de espera entre as doses e, principalmente, pela comunicação com cada público-alvo, para que eles não deixem de comparecer.

— É possível a coinfecção de Covid-19 e influenza. Ninguém tem bola de cristal para dizer o que vai acontecer, mas efetivamente não podemos abrir mão da vacinação contra gripe neste momento, porque ainda é um problema de saúde importante, principalmente nos grupos mais vulneráveis — afirma Carla Domingues, epidemiologista que foi coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos, até outubro de 2019. Neste ano, a campanha contra a influenza vai começar mais tarde do que em 2020, quando foi antecipada em 23 dias e teve início em 23 de março. Foram vacinadas 73,7 milhões de pessoas do público-alvo, 88,8% de uma meta de 90%. Agora, nem há data exata para o lançamento. Na sexta-feira, o Ministério da Saúde anunciou que ela começará “na segunda quinzena de abril”.

—É de praxe começar em abril e ir até julho, agosto. O ano passado foi uma exceção, porque, com o começo da pandemia, entendeu-se que vacinando as pessoas contra gripe, que tem sintomas semelhantes, desafogaria o sistema de saúde, colaborando para evitar um colapso. Foi uma decisão muito acertada — avalia a médica Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). —Mas agora a realidade é outra. Estamos na campanha da Covid-19 e ainda não chegou a vacina da gripe. E o público-alvo se mistura nesta situação.

14 DIAS ENTRE VACINAS

Idosos, profissionais de saúde, professores, indígenas e portadores de doenças crônicas são alguns dos grupos considerados prioritários para ambas as campanhas. Para eles, a grande questão, destacam Domingues e Levi, é a orientação de que as vacinas de Covid-19 e gripe não podem ser tomadas ao mesmo tempo. Como os imunizantes contra o Sars CoV2 em uso no Brasil são novos e aprovados apenas para uso emergencial, é necessária a espera mínima de 14 dias entre a aplicação deles e de qualquer outra vacina.

—Não há ainda estudos que mostrem quen ã ovai haver interferência, se jana imunogenicidade, queé a cap acidade de produzir anticorpos tanto para uma vacina quanto para outra, seja pela própriavigilância de eventos adversos—explica Domingues. Levi destaca o fator complicador — e difícil de se aplicar em uma dupla vacinação em massa:

—Teremos de perguntara cada pessoa a ser vacinada: “Você já fez vacina de gripe ou de Covid-19? Se fez, sua segunda dose contra a Covid-19 está marcada para quando?” A médica, que acompanha atentamente os planos do Ministério da Saúde por meio da SBIm, entidade responsável por ajudar nas decisões das campanhas, conta que a estratégia estudada pela pasta é a de inverter as prioridades neste ano. Assim, os primeiros chamados para a imunização contra a influenza serão as crianças (até 6 anos, idade delimitada pelo PNI) e as gestantes, por serem grupos ausentes da campanha contra a Covid-19. Somente na sequência é que devem  ser convocados profissionais de saúde e idosos, que normalmente estariam antes no calendário, conta Levi. Mesmo assim, a diretora da SBIm calcula que é grande a chance de ver idosos serem convocados para as duas vacinas ao mesmo tempo:

—Dependendo do número de doses e da celeridade da campanha contra a Covid-19, corre-se o risco de uma sobreposição, principalmente entre cidadãos de 60 e 80 anos. Neste caso, diz Levi, deves e priorizara proteção contra a Covid -19:

—Idosos têm risco maior de morte por gripe, mas temos em média mil mortes por ano por gripe. Por Covid-19, são quase duas mil por dia. Apesar da tentativa de desafogar o sistema, começar a campanha por crianças e gestantes traz um temor: o da baixa adesão. Nos últimos anos, entre todos os convocados para a influenza, eles têm sido os que menos comparecem.

— Estamos vendo isso com as vacinas do calendário das crianças. Todas estão com coberturas baixíssimas — diz Levi.

— Isso pode ser perigoso. Imagina as crianças (na escola) pegando gripe, Covid-19, e trazendo para casa. Vai ser complicado. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não informou detalhes de como será organizada a campanha. Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, a pasta diz que“irá orientara população” quanto ao “intervalo mínimo de 14 dias entre essas vacinas” eque“essas informações serão repassadas aos profissionais de saúde par aficarem atentos durante a aplicação das vacinas ”. O ministério informou ainda que 80 milhões de doses da vacina contra a gripe já estão encomendados ao Instituto Butantan. Procurado pela reportagem, o órgão, que tema maior fábrica do hemisfério sul para vacinas de influenza, disse que “a produção está acontecendo neste momento, sem qualquer atraso no cronograma”. Os envios, explica, acontecerão “nos finais dos meses de março, abril e maio”. Ao fim dessas entregas, informa, a capacidade de envase do imunizante CoronaVac será dobrado.