O Globo, n. 31985, 03/03/2021. Economia, p.17

 

 

Bolsa Família: Senado estuda tirar programa do teto de gastos

 

Proposta seria incluída em PEC que destrava o auxilio emergencial. Secretário do Tesouro diz que medida levaria a aumento de juros

 

MANOEL VENTURA E GERALDA DOCA

economia@oglobo.com.br

 

Líderes do Senado estão discutindo a possibilidade de tirar o Bolsa Família do teto de gastos —que limita o aumento das despesas da União à inflação — pelo menos no ano de 2021, de acordo com fontes que acompanham de perto o assunto. A medida seria incluída na proposta de emenda à Constituição (PEC) que prorroga o auxílio emergencial neste ano. A equipe econômica é contra a medida.

Inicialmente, o senador Alessandro Vieira (SE) sugeriu retirar o Bolsa Família da proibição de aumento de despesas obrigatórias. Os senadores, porém, concordaram em ampliar a sugestão para tirar todo o gasto do programa do teto neste ano. O líder do MDB, Eduardo Braga (AM), disse ao GLOBO que essa proposta foi apoiada por todos os partidos. Segundo fontes, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), também foi a favor da ideia.

A equipe econômica reagiu à proposta. O secretário do Tesouro, Bruno Funchal, afirmou que a medida acabaria prejudicando os vulneráveis no futuro, com aumento de juros e do desemprego:

— Essa incerteza se traduz em risco, que se traduz em taxa de juros (mais altas). Isso vai aumentar os juros e, com isso, menos investimentos e geração de empregos. Para a nossa retomada econômica, para o dia seguinte da pandemia, é muito ruim. O vulnerável hoje vai ser punido no futuro. Sem contar o efeito inflacionário.

O secretário destacou que o país precisa de riscos e juros baixos para gerar emprego:

— Precisamos ajudar o vulnerável hoje e que ele tenha a possibilidade de se empregar no pós-crise. Para isso, é preciso juro baixo e crescimento. A proposta de Bolsa Família fora do teto é uma flexibilização do teto, que vai na direção contrária ao que a gente quer.

 

TEXTO DESIDRATADO

Na avaliação do economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), a medida não faz sentido:

— Retirar o Bolsa Família do teto não faz sentido. Foge à lógica da regra e não seria necessário, inclusive porque o programa vem sendo realizado sem problemas sob as regras do teto.

Por outro lado, o Ministério da Cidadania é a favor da proposta. O Orçamento para este ano ainda não foi votado e prevê R$ 34,9 bilhões para o programa. O relator tanto da PEC Emergencial quanto do Orçamento é o mesmo, o senador Márcio Bittar (MDBAC). Tirar o benefício do teto permitirá aumentar o benefício já neste ano e sem nenhum corte de gastos como compensação.

Ontem, Bittar fez a leitura em plenário do novo parecer da PEC do auxílio. O texto foi desidratado. O senador retirou da proposta pontos polêmicos, como o fim do piso de gastos para saúde e educação, além de recuar de um dispositivo que revogava a destinação de 28% da arrecadação de PIS e Pasep para o BNDES, medida já tentada pelo governo durante a reforma da Previdência em 2019.

O texto mantém gatilhos para corte de despesas no futuro. No caso da União, quando os gastos obrigatórios somarem 95% das despesas totais. Para estados e municípios, quando o gasto atingir 95% da receita. Nesses casos, os governos poderão acionar medidas como congelamento de salários de servidores e suspensão de concursos.

 

 

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Analítico ou Da contabilidade criativa à contabilidade descarada

 

RENATO ANDRADE

renato.andrade@sp.oglobo.com.br oglobo.globo.com/analitico

 

Enquanto a equipe econômica luta para garantir alguma medida que possa reduzir, ainda que muito superficialmente, as perspectivas futuras da política fiscal com a volta do auxílio emergencial, as lideranças do Senado resolveram entrar no debate.

A turma da Casa que representa os estados quer retirar da lista de despesas que o governo precisa monitorar para saber se está cumprindo o teto de gastos fixado na Constituição todo o dinheiro que for gasto com o programa Bolsa Família.

Isso significa desaparecer com nada menos que R$ 34,9 bilhões da lista de despesas. Fora do teto, o limite para aumentar o benefício desaparece. Assim como qualquer possibilidade de alguém que acompanha as contas públicas brasileiras acreditar que a equipe econômica conseguirá, num futuro próximo, evitar que a dívida ultrapasse todos os limites do bom senso para um país que encara rombo atrás de rombo há quase uma década.

É importante lembrar que o próprio auxílio, que pode custar outras dezenas de bilhões de reais, a depender de quem faz a conta, também será uma despesa que não constará da lista de gastos oficiais.

Num passado não muito distante, o governo federal, na gestão de Dilma Rousseff, adotou uma série de medidas para dizer que cumpria as metas fiscais estabelecidas mesmo quando os números mostravam o contrário.

Gastos com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) eram chamados de “investimentos” e, por isso mesmo, não contabilizados como despesas. Outras piruetas foram dadas pela equipe do então ministro Guido Mantega, titular da Fazenda, e ganharam a alcunha de “contabilidade criativa”.

Se a ideia dos líderes no Senado prosperar, teremos uma versão mais rústica da criatividade de 2012. Passaremos a ter a contabilidade descarada.