O Globo, n. 31985, 03/03/2021. Sociedade, p.10

 

 

 

Vozes da Covid: relatos de quem viu a doença perto

 

Com a pandemia recrudescendo a reboque do relaxamento do isolamento social e da precariedade de hospitais, profissionais de saúde e familiares de pacientes revelam dias de exaustão, desencontros e buscas por leitos

 

CÍNTIA CRUZ E CONSTANÇA TATSCH

sociedade@oglobo.com.br

 

Há duas semanas sem ver o marido, a dona de casa Maria Luiza, de 65 anos, está ansiosa. Ela aguarda, com esperança, a alta dele, em breve, do Hospital Municipal Raul Gazolla, onde está internado pela Covid-19.

Ele completa 83 anos na próxima sexta-feira. Cristiene Faria, que trabalha em uma enfermaria, também não abraça seus filhos há oito meses. Mas por um motivo diferente: todos estão saudáveis, mas ela, na linha de frente de combate à doença, tem medo de transmitir o vírus para a família. A médica Nathalia Correa também tem um relato triste, de quem lida diariamente com a doença de perto: ela viu muitos pacientes e colegas médicos morrerem durante a pandemia. Já a jornalista Ana Carolina deparou-se com a emergência do hospital lotada quando tentou internar o marido. Ele melhorou e agora está em casa. Mas, após a tensão da espera por um leito, desabafa: “Sorte não é um recurso que a gente deveria precisar nessa hora”.

A Covid-19 aterrissou no país há mais de um ano. A curva de casos e óbitos ensaiava uma queda no final de 2020, mas no ano novo as UTIs encheram novamente, e o número de óbitos não para de crescer.

A nova onda da Covid-19 veio embalada pelo relaxamento de medidas de isolamento social, especialmente no Natal, réveillon e carnaval, além da precariedade do sistema de saúde, que ainda não havia se recuperado dos contágios registrados no ano passado. O ano de 2021 mostra que o coronavírus, que agora também aparece com novas variantes, não tem data para sair de nosso convívio.

Os relatos de Maria Luiza, Cristiene, Nathalia e Ana Carolina são apenas alguns dos muitos que constroem um cenário desolador.

 

NA LUTA CONTRA O VÍRUS

Ana CarolinaAraújo,40 anos, Jornalista

Na quarta à noite, meu marido começou a ter sintomas de Covid: febre, dores no corpo, cansaço, dor de garganta, coriza, dor de cabeça e muita tosse. Ele tem 42 anos e obesidade leve. Ficamos medindo a saturação de oxigênio para ver a necessidade de hospitalização. Na madrugada de sexta pra sábado, começou a baixar e no sábado deu 89/90. A orientação era pra ir pro hospital se baixasse de 93, então fomos para o Hospital da Bahia. O medo era hipóxia silenciosa. Chegando lá, ele nem foi admitido. Disseram que a emergência Covid estava fechada havia 5 dias por falta de vagas. E que não adiantava a gente ir para o Santa Izabel, que é o outro hospital grande que atende nosso plano, pois também estava fechada. A recepcionista fez algumas perguntas sobre febre, e tal, e disse pra ele esperar em casa. Quando voltamos pra casa, de alguma forma, a saturação dele melhorou. Ele brincou que o corpo entendeu que era a única solução. Fizemos uma teleconsulta no sábado à noite e o médico disse que se baixasse de 93 era pra voltar pra emergência e insistir no atendimento, que era obrigação deles.

Para mim, esse colapso é não só absolutamente previsível, mas até calculado. Com o nosso pacto federativo, a gente precisa de dinheiro federal pra saúde, mas a gente nem tem um governo....  A sensação é de estarmos entregues. Ontem meu marido estava péssimo, chorou a tarde toda. Não basta estar doente, ainda tem esse medo de morrer sem socorro. Estamos dando sorte que ele tem melhorado, mas sorte não é um recurso que a gente deveria precisar nessa hora.

 

Nathalia Correa de Araújo, 33 anos, médica

Para mim, como médica, cada plantão tem sido desgastante! É difícil manter o equilíbrio emocional vendo tantos casos aumentando diariamente. Eu e vários colegas já desenvolvemos quadros de ansiedade pelo desgaste, até mais emocional do que físico. Perdi vários colegas médicos dentro do hospital. E vi vários pacientes da mesma família sofrendo ao perder parentes. Tem sido muito angustiante.

Acredito que seja o pior momento da pandemia. Essa segunda onda está mais grave, com mais complicações. Por ser tratar de um hospital privado, ainda não precisei recusar paciente ou escolher entre quem vai receber tratamento. Há leitos, porém poucos. Existe um CTI só pra isso que está cheio. Chegam pacientes de diversas idades, jovens e idosos, não tem mais parâmetro agora. Vemos idosos internando e se recuperando bem. E jovens que internam e infelizmente complicam e falecem. Essa doença não tem escolhido classe social e nem idade. Nunca sabemos como pode evoluir porque é tudo muito novo para a gente também.

Na minha visão a situação de colapso na saúde é preocupante e desesperadora. Além do Covid estamos tendo que lidar com novos casos de dengue, doença que está voltando agora. Atendi essa semana a dois pacientes com dengue hemorrágica com indicação de internação. Não estamos preparados para enfrentar o Covid e casos de dengue com internação. Não haverá leitos para isso. 

 

Cristiane Faria, 35 anos, enfermeira

 

Meu CTI e pelo menos mais um estão cheios. Do terceiro, não tenho informação. Semana passada, a taxa de ocupação estava 50%, 60%. Na quinta-feira, os leitos foram todos ocupados e a maior parte em estado grave e instável. A gente tenta estabilizar, fazer os primeiros cuidados para que eles tenham uma sobrevida, mas o desfecho não está sendo muito favorável para todos eles.

Antigamente, a gente se assustava muito com óbito. Hoje a gente se assusta com a quantidade de óbitos. A gente sabia que o óbito vai acontecer, mas espera que não sejam tantos numa semana.

Na semana passada, foram seis óbitos. Um deles foi uma paciente que tinha marido, filhas, falava muito da família. Ela queria falar com elas e a gente sempre procurava acalmá-la com mensagens positivas. Quando cheguei para o plantão, perguntei por ela e veio a notícia de que tinha ido a óbito. É nesse momento que a gente respira fundo e volta. Todos os dias, antes de deitar, rezo e peço pelos meus pacientes e pelos profissionais que trabalham comigo. Por todos eles.

Eu tive todos os sintomas da Covid em março do ano passado, mas não positivei. Tomei a segunda dose da vacina dia 21 de fevereiro. Meu marido teve a doença em dezembro. Nosso filhos, de 8 e 13, estão bem. Mesmo assim, continuo com as medidas protetivas. Lavo a roupa separadamente, entro em casa e vou direto para o banheiro. Não abraço meus filhos há quase oito meses. Acho que nós, profissionais de saúde, sentimos cansaço lá no início. Agora é exaustão e sobrevivência. Tirei férias em novembro, mas parece que estou vivendo cinco anos em três meses.

 

Maria Luiza da Silva Paes,65 anos, dona de casa

Dia 5 de fevereiro, meu marido teve muita tosse e cansaço. Levei para o Polo (de Atendimento Exclusivo à Covid-19) de Mesquita por volta das 10h. Lá mesmo, fizeram o exame e transferiram para a UPA. Fui junto na ambulância. Ficamos lá até as 19h, mas ele não quis ficar internado e fomos liberados. Dois dias depois, os sintomas continuavam. Marquei consulta numa clínica particular, mas eles nos mandaram para a UPA do bairro Botafogo, em Nova Iguaçu. Lá, foi atendido, medicado e liberado. Nos dia seguinte, só piorava. Dia 16, levamos de novo para o Polo de Mesquita e, mais uma vez, foi encaminhado para a UPA (Mesquita). De lá, transferiram, no mesmo dia, para o (Hospital Municipal) Raul Gazolla, no Rio. Desde então, a gente ainda não se encontrou mais. Não vejo meu marido há duas semanas.

Lá em casa, eu e nosso neto tivemos (Covid-19) também. Comecei com os sintomas dois dias depois do meu marido. No quintal, são quatro casas. Todo mundo pegou, mas ninguém precisou ser internado. É a primeira vez que saio de casa desde que fiquei doente. Vim hoje ao hospital (Ronaldo Gazolla) pela primeira vez só para trazer os pertences dele. Mesmo se pudesse, eu não ia querer vê-lo. Vai se emocionar ainda mais, mas sei que já está na enfermaria e bem.

Desde o dia 16, não soltei o celular. Todos os dias, o hospital ligava para dar notícias e eu ficava ansiosa aguardando o telefonema. Pensei que ele não fosse mais voltar. Com 82 anos, muito cansaço, falta de ar, diabético, hipertenso, obeso. Sexta-feira, ele completa 83 anos. Espero que tenha alta até lá. Eu já estou me restabelecendo para cuidar dele.

Mesmo com as notícias sobre o aumento de casos da doença, eu não me desesperava. Sou muito de esperar a hora. Sofri, mas calada. Somos casados há 40 anos e tenho com ele uma filha de 36 anos.