O Globo, n. 31985, 03/03/2021. País, p.6

 

 

MP vê ligação de ''rachadinha'' com imóvel de Flávio no Rio

 

 Recorte capturado

Salários desviados teriam ajudado a financiar apartamento que senador diz ter vendido para comprar mansão em Brasília

 

JOÃO PAULO SACONI

joaopaulo.saconi@infoglobo.com.br

 

Salários de ex-funcionários do antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) podem ter sido utilizados, através do esquema de “rachadinha”, na aquisição de um apartamento na Barra da Tijuca, na Zona Oeste da capital fluminense, que o parlamentar diz ter vendido para dar entrada na compra de sua nova casa, uma mansão de R$ 6 milhões no Lago Sul, bairro nobre de Brasília.

As suspeitas referentes à aquisição do imóvel no Rio, em 2014, foram levantadas pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ) na denúncia contra Flávio e outras 15 pessoas, oferecida em outubro do ano passado à Justiça. Foram dois anos de investigação sobre supostos desvios da remuneração da equipe de Flávio em prol dele próprio e da mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro, e outros envolvidos.

Para o MP-RJ, Flávio e Fernanda podem ter utilizado recursos ilícitos desviados da Alerj para pagar o “sinal” de R$ 50 mil do apartamento na Barra, localizado no condomínio Altântico Sul, bem como parcelas de um financiamento bancário utilizado para quitá-lo .A promotoria indica que o casal pode ter operado da mesma maneira ao efetuar pagamentos de impostos referentes à propriedade, como o Imposto Predial e Territorial Urbano(IPTU).

O MP-RJ identificou que, cerca de duas semanas antes do pagamento, em maio de 2014, Fernanda não tinha saldo para arcar com o cheque de R$ 50 mil referente ao “sinal” para a compra do apartamento. A situação mudou em um único dia, no fim de abril, quando a conta dela recebeu depósitos fracionados de R$ 20 mil, em dinheiro vivo, “a fim de ocultar a origem dos recursos”, conforme afirma a promotoria na denúncia.

Além disso, a apuração mostrou que Flávio passou a receber depósitos fracionados em sua conta, a partir de junho de 2014, em datas próximas aos pagamentos das parcelas do financiamento imobiliário contraído para pagar o imóvel. O MP-RJ lista depósitos até agosto de 2018. Em março daquele ano, por exemplo, Flávio recebeu R$ 9 mil em depósitos uma semana antes de pagar uma parcela de R$ 8,5 mil do financiamento, segundo o Ministério Público do Rio.

No caso do IPTU, o MP-RJ analisou pagamentos feitos pelo casal Bolsonaro em 2016 e 2017, totalizando cerca de R$ 17,4 mil, e registrou na denúncia que apenas uma parcela, de R$ 924,30, foi debitada da conta do parlamentar. O restante, diz a promotoria, foi pago com dinheiro em espécie, “sem deixar rastros no sistema financeiro nacional sobre a origem dos recursos utilizados para quitar os tributos”.

Esses valores, assim como outros envolvidos na denúncia, podem ter sido arrecadados via “rachadinha”, indicam as conclusões do MP. Elas só foram possíveis devido à quebra de sigilo fiscal e bancária de Flávio, Fernanda e outros envolvidos, anulada na semana passada, por falta de fundamentação, pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a pedido dos advogados do parlamentar.

 

OUTRO LADO

Flávio emitiu ontem uma nota e divulgou um vídeo, nas redes sociais, para explicar a compra da mansão de 2.400 m² na área batizada de “Setor de Mansões Dom Bosco”. A aquisição da casa foi divulgada anteontem, pelo site “O Antagonista”, e confirmada pelo GLOBO.

O filho do presidente Jair Bolsonaro reclamou do destaque dado pela imprensa à compra, classificada como “exploração de uma informação simples”, e explicou de onde teria tirado o dinheiro para o investimento:

—Vendi o imóvel que eu tinha no Rio de Janeiro, vendi uma franquia que eu possuía, também no Rio de Janeiro. Dei uma entrada numa casa aqui em Brasília e a maior parte dessa casa tá sendo financiada no banco, numa taxa que foi aprovada conforme o meu rendimento familiar, como qualquer pessoa pode fazer no Brasil — afirmou Flávio.

O imóvel ao qual o parlamentar se referia era o apartamento da Barra da Tijuca, que constava na declaração de bensentregueporeleem2018 à Justiça Eleitoral, quando disputou o Senado. O apartamento, cujo repasse a um novo proprietário ainda não foi oficializado em escritura pública, foi declarado com o valor de avaliação do mercado imobiliário (R$ 917 mil), e não com o valor de compra (R$ 2,5 milhões), o que é permitido por lei. Ainda foi incluída no documento a franquia da loja de chocolates Kopenhagen, também na Barra, repassada no mês passado ao Grupo CRM, dono da marca. O MP-RJ viu indícios de lavagem de dinheiro na loja.

Procurada pelo GLOBO, a defesa de Flávio não retornou.

 

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Parcela de financiamento é mais da metade do salário do senador

 

Simulação mostra que vencimento não seria suficiente para obter o crédito

 

AGUIRRE TALENTO E CHICO OTAVIO

opais@oglobo.com.br

 

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) terá que gastar mais da metade do seu salário de parlamentar com o pagamento das parcelas do financiamento da mansão de R$ 6 milhões que ele acaba de comprar no bairro do Lago Sul, zona nobre de Brasília, apontam simulações de crédito feitas junto ao Banco de Brasília (BRB). Além disso, para conseguir o financiamento que o senador obteve, seria necessário ter um rendimento mensal bem superior ao seu salário de R$ 33 mil brutos.

De acordo com a escritura de compra do imóvel, Flávio financiou R$ 3,1 milhões junto ao BRB, para quitação em 360 meses, com taxas de juros entre 3,65% e 4,85%. Sua esposa Fernanda, que é dentista, também consta como compradora.

O GLOBO executou simulações de financiamento em parâmetros semelhantes junto ao sistema do BRB. O resultado mostra que a primeira parcela do financiamento seria no valor aproximado de R$ 18 mil, o que representa mais da metade do valor bruto do salário de Flávio (cerca de R$ 33 mil). Com os descontos de impostos, a remuneração líquida do parlamentar varia— ele declarou ao pedir o financiamento ter renda mensal de R$ 28 mil, e sua mulher, de R$ 8 mil. No último mês, Flávio recebeu pouco mais de R$ 24 mil do Senado.

As simulações apontam que a renda mínima exigida para obter esse financiamento é de aproximadamente R$ 45 mil, acima do salário do senador.

Já as taxas de juros apresentadas nas simulações ficam em parâmetros semelhantes aos que constam no registro do negócio de Flávio.

O GLOBO questionou a assessoria do senador sobre quais os valores do rendimento mensal da sua família e se Flávio possui outras fontes de renda além do salário de parlamentar, mas não houve resposta.

Procurado na noite de anteontem, o BRB informou que não comenta casos específicos de concessão de financiamento devido ao sigilo bancário.

 

MADRINHA

A promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho, a nova encarregada de investigar Flávio no inquérito que apura se o senador cometeu o crime de falsidade ideológica eleitoral, é madrinha de casamento de Luciana Pires, advogada do filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro. A informação foi publicada pelo colunista Guilherme Amado, da revista ÉPOCA.

A promotora se afastou em 2019 das investigações sobre a morte da vereadora Marielle Franco após a repercussão negativa de posts em redes sociais que a mostram apoiando a campanha presidencial de Bolsonaro.

AO GLOBO, Carmen disse que ainda não examinou o inquérito, mas adiantou que, se entender que foi correta a decisão do seu colega da 204ª Vara Eleitoral, promotor Alexandre Themiltocles, pelo arquivamento do caso, vai se dizer impedida de assumi-lo.

—Adianto que, se achar que o Alexandre tinha razão para o arquivamento, não poderei continuar (no caso Flávio). Se entender que há fundamentos atuarei sem problemas.

Em junho do ano passado, o juiz Flávio Itabaiana, da 204ª Zona Eleitoral , discordou do pedido de arquivamento e encaminhou os autos para a para análise da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Dois meses depois, o colegiado decidiu por unanimidade que o Ministério Público do Rio (MP-RJ) deve prosseguir com as investigações.

Sobre as postagens pró-Bolsonaro, Carmen disse que se manifestou “como cidadã”.