Título: A fome nos dados do IBGE
Autor: Francisco Menezes
Fonte: Jornal do Brasil, 31/01/2005, Opinião, p. A11

Os recentes resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar, do IBGE, acerca da situação nutricional do brasileiro, confirmaram aquilo que já se sabia: a desnutrição calórico-protéica do brasileiro reduz-se ao mesmo tempo em que se acentua o crescimento da obesidade em todas as categorias de renda. Enquanto isso, prossegue o processo de mudança de hábitos alimentares, com a substituição dos alimentos in natura pelos produtos industrializados. Então, por que tamanha polêmica, quando foi apresentada a avaliação desses dados? Porque afloraram questões sobre as quais não há consenso e que trazem repercussão sobre políticas públicas, seja na esfera mais ampla das políticas sociais, seja no âmbito específico da área nutricional.

Merece o combate à fome, diante desses novos dados, o destaque invocado na década passada por Betinho e agora alçado ao patamar de política pública prioritária através do Fome Zero? Ora, por trás desta questão, existem pelo menos dois entendimentos muito diferentes acerca do problema da fome, no Brasil. O primeiro deles limita a questão à simples deficiência crônica de energia no indivíduo. Assim, a medição e pesagem do IBGE provariam que ela não é mais relevante para o país. É importante que se considere, mesmo dentro desse ponto de vista, que o resultado oferecido pelo IBGE é parcial, pois além de não incluir crianças e adolescentes, não consegue chegar ao contingente mais vulnerável, entre os mais pobres, quer pela inacessibilidade de onde habitam, quer pela mobilidade que é característica de parte deles.

A outra linha que comparece neste debate, pauta-se no princípio do direito humano à alimentação e considera que a fome é um fenômeno social de privação do alimento, mas que vai além da realização biológica dessa privação. Assim, a informação extraída a partir do cálculo do índice de massa corporal dos indivíduos é insuficiente para dizer sobre o tamanho da fome no Brasil. Uma pessoa que busca seu alimento no lixo, ou que compromete outra necessidade essencial para poder se alimentar, ou que é obrigada a exercer atividade degradante em troca de um prato de comida, ou ainda que vive a ameaça permanente de não ter o que comer, pode até estar se alimentando, mas não tem esse direito assegurado e forma o contingente que, infelizmente, ainda padece com o espectro da fome nesse país. Medir tal fenômeno, esbarra na imponderabilidade e na variabilidade dos fatores que o determinam, inclusive aqueles de natureza subjetiva. Mas as políticas públicas exigem algum grau de quantificação para seu enfrentamento. O critério até hoje utilizado, de estimar o número de pessoas que não dispõem de poder aquisitivo para, por conta própria, garantirem a provisão de uma cesta de alimentos para o próprio consumo, é insuficiente, mas permite prever aqueles que, potencialmente, estão sob maior risco.

Estas visões também se refletem no âmbito nutricional. De um lado, partindo de um enfoque restrito ao aspecto calórico-protéico, a desnutrição estaria sendo substituída por um problema típico dos países desenvolvidos, que é o excesso de peso. A outra linha recomenda uma leitura mais prudente dos dados, observando-se os cortes regionais e os estratos de renda. Constata-se, então, no grupo que recebe até R$ 400, o elevado consumo de açúcar e de gorduras. Ganha-se peso, mas não se garante a nutrição adequada, fazendo permanecer ou agravando problemas como a carência de vitamina A e de cálcio.

Dada a complexidade da situação, não será um único programa social que dará conta de garantir a segurança alimentar para todos no país. Ainda assim, deve-se reconhecer a importância de um programa como o Bolsa-Família, ao garantir que os grupos sociais mais pobres possam dispor de alguma renda para ter acesso aos alimentos. Se conseguirmos somar a isto uma ação no sentido de propiciar informações e garantir o consumo de alimentos saudáveis a todos os estratos de renda da população, o país dará um grande passo para transformar em realidade a meta do presidente Lula, de assegurar três refeições de qualidade para todos os brasileiros.