O Globo, n. 31983, 01/03/2021. Economia, p.13

 

 

Ajuda defasada

 

Inflação corrói poder de compra de beneficiários do Bolsa Família

 

FERNANDA TRISOTTO E LETYCIA CARDOSO

economia@oglobo.com.br

 

À espera da reformulação prometida pelo governo, o Bolsa Família tem valor corroído pela inflação e cerca de um milhão de pessoas na fila pelo benefício. Economista calcula que repasse médio, hoje de R$ 190, deveria estar entre R$ 198,50 e R$ 200. Beneficiários relatam dificuldade para comprar alimentos.

A prorrogação do auxílio emergencial resolverá apenas por pouco tempo os problemas da assistência aos vulneráveis no Brasil. Quando o benefício acabar novamente, o governo terá o desafio de encontrar uma solução para reformular o Bolsa Família, cujo valor e abrangência estão defasados. Considerando o repasse médio de R$ 190 pago aos integrantes do programa no período pré-pandemia, a ajuda federal deveria estar entre R$ 198,50 e R$ 200 para acompanhar a alta de preços, de acordo com cálculos do analista em contas públicas da Tendências Fabio Klein. Ao mesmo tempo, a demora na discussão do Orçamento adia uma solução para incluir cerca de 1 milhão de domicílios à espera do benefício.

Hoje, o valor do Bolsa Família não precisa seguir a alta dos preços. O programa não é reajustado desde o governo Michel Temer, e a defasagem reduz o poder de compra do benefício. Só no ano passado, os alimentos, principal gasto das famílias mais pobres, tiveram alta de 15,53%, segundo dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação em domicílios com renda de até cinco salários mínimos.

—Não existe essa obrigatoriedade de corrigir por inflação, mas, dada a natureza do programa, seria correta, e aceitável, a reposição inflacionária —avalia Klein.

Os benefícios que compõem o Bolsa Família são fixados por lei e decreto presidencial. Para aumentar esses valores, é preciso alterar a legislação. Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro disse que em julho proporia uma reformulação do programa, mas não deu detalhes.

Já o número de famílias atendidas depende da fatia do Orçamento destinada ao programa. A proposta orçamentária de 2021 separou R$ 34,8 bilhões para a medida — alta de 18% em relação ao ano passado. A projeção estimava o pagamento do benefício a 15,2 milhões de famílias por mês. O texto, no entanto, ainda não foi aprovado pelo Congresso, e o aumento de beneficiários não se concretizou. O Ministério da Economia informou que os gastos com o programa não estão limitados à regra de 1/12 do previsto por mês, que vale para despesas não obrigatórias.

 

ALIMENTOS PROIBITIVOS

A indefinição sobre o futuro do Bolsa Família ocorre pouco depois de boa parte dos atendidos pelo programa terem recebido um valor maior. No ano passado, o pagamento do auxílio emergencial — cinco parcelas de R$ 600, sendo que mulheres chefes de família recebiam o dobro, e mais quatro de R$ 300 — impulsionou a renda dessas famílias. Já em 2019, houve um 13º para os beneficiários do Bolsa Família.

—Pela regra do auxílio, principalmente no caso das famílias chefiadas por mulheres, quem estava no Bolsa Família chegou a receber mais de seis vezes o valor do benefício em um único mês, mas depois voltou para um valor muito menor. Fora isso, tem a questão da fila. Não é só um problema de valor, mas também de quantidade de pessoas que precisam receber — ressalta Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

A perda do poder de compra do benefício é percebida pela dona de casa Raquel Assunção, de 24 anos, que mora sozinha com as filhas, de 1, 3 e 5 anos, em uma comunidade em Del Castilho, na Zona Norte do Rio. Ela trabalhava como diarista e conseguia renda pouco superior a R$ 800 por mês. Mas, na pandemia, foi dispensada pela maioria das casas e hoje só faz faxina em uma delas, de 15 em 15 dias. O pagamento dessas duas diárias, R $360, e oc rédito do Bolsa Família, R$ 170, são as únicas fontes de renda da família.

— Carne vermelha não dá para comprar de jeito nenhum. Estou comendo coxa de frango, calabresa, ovo... Até peito de frango está caro! Agente vai no mercado com R $100 e traz só uma bolsinha —conta Raquel.

Lucilene da Silva, de 39 anos, moradora de Parnaíba, no interior do Piauí, também diz que há muito tempo não tem carne no cardápio. Mãe de um menino de 3 meses e de uma menina de 7 anos, não temido trabalhar como diarista por causado aumento dos casos de Covid. Para manter a casa, ela conta com R$ 130 do Bolsa Família, além de ajuda da mãe, que recebe um salário mínimo (R$ 1.100).

— É praticamente uma esmola. Não dá para nada! Uma lata de óleo aqui está custando R $10. O arroz de um quilo está R$ 6. A única coisa que eu como com frequência é galinha, porque o quilo sai a R$ 8 —diz Lucilene.

Segundo estimativas do pesquisador Daniel Duque, da Fundação Getulio Vargas, 22 milhões de brasileiros que, em 2019, antes da pandemia, não eram pobres entraram na pobreza neste início de ano, como reflexo do fim do auxílio e do aumento do desemprego. A ONG Ação da Cidadania estima que 10,3 milhões de brasileiros sofrem de insegurança alimentar, com um número crescente tendo a fome como rotina.

 

REVER REGRAS DE ACESSO

Além da revisão do valor, o Bolsa Família precisa rever regras de acesso e de saída, alertam especialistas. O professor de economia do Insper Sérgio Firpo ressalta que o programa é bem-sucedido na redução da extrema pobreza, mas pode ser aprimorado:

— Com programa de renda condicionada, você consegue rompera armadilhada pobreza transmitida de geração a geração, mas não cria condições para que os adultos beneficiados consigam gerar renda a partir da sua inserção no mercado de trabalho.

O especialista acrescenta que a experiência da pandemia também aponta caminhos que exigem revisão, como a agilidade para incorporar novos beneficiários.

— O ideal seria que o Bolsa Família fosse turbinado tanto na questão de valores quanto de cobertura, e ágil o suficiente para colocar para dentro os novos pobres: aquele que ficou pobre durante a pandemia ou quem tem uma variação cíclica de renda e não consegue poupar, porque a renda é pequena demais para isso — explica Firpo.

 

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“Preciso do auxílio emergencial para comprar alimentos”

 

E-mails enviados ao governo mostram drama de quem teve negado o pedido do benefício. Nova rodada traz esperança

 

GABRIEL SHINOHARA

gabriel.shinohara@bsb.oglobo.com.br

 

“Estou desempregada e não possuo seguro desemprego, preciso do auxílio emergencial para comprar alimentos.” O pedido da cozinheira Telma Maria dos Santos está em um e-mail enviado a órgãos como o Ministério da Cidadania. Ela não foi a única a tentar contato direto com o governo após ter o pedido pelo benefício negado, mostram mensagens eletrônicas públicas analisadas pelo GLOBO, mandadas também para o ministro da Economia, Paulo Guedes, e seus secretários. Com a expectativa de renovação do programa, brasileiros que decidiram apelar diretamente às autoridades voltaram a ter esperança de receber o auxílio.

—Eu sempre trabalhei, sempre paguei meus impostos, na carteira era descontado. Agora neste momento em que a gente mais precisando, parado em casa, sem poder arrumar trabalho, as coisas só piorando, que a gente precisa de uma ajuda do governo, cadê? Não tem —diz Telma.

Moradora de Cruz das Almas, no interior da Bahia, ela fez chegar sua mensagem por meio de Valdeni Martins, detetive particular e espécie de faz-tudo da cidade, que fica a 150 quilômetros de Salvador. Ele presta serviço para as pessoas que necessitam do auxílio emergencial, mas têm dificuldade para lidar com a burocracia. Em troca de um valor pago apenas após o recebimento do benefício, ele reúne a documentação e faz os pedidos.

No e-mail enviado à Dataprev, órgão responsável pela análise dos requerimentos, Valdeni transmite o recado de Telma, que conta ser pobre, morando sozinha, e que o auxílio serviria para comprar alimentos. Nem assim conseguiu o benefício. O e-mail foi mandado em 23 de julho do ano passado. Hoje, ela diz não lembrar quando teve carne em casa pela última vez:

—Vivo de caridade, vou na casa da minha irmã, ela me dá um quilo de arroz, de feijão, e aí vou vivendo. Tomo remédio antialérgico que custa R$ 56 e não posso ficar sem.

O próprio Valdeni, que aprendeu a lidar com os sistemas do governo para fazer os pedidos, teve o auxílio negado. O detetive mandou um e-mail ao gabinete de Guedes e a vários órgãos no fim de julho, relatando que estava desempregado e não tinha conseguido o benefício. Apesar disso, conta que conseguiu se virar em 2020:

—A gente sempre dá um jeito. É luta, na correria.

Os dois pedidos, além da Economia, foram enviados ainda à Caixa e ao Ministério da Cidadania. Em resposta ao GLOBO, a pasta disse que nem Valdeni nem Telma se encaixavam nos critérios para receber o auxílio: “É importante reforçar que a segurança da operação foi premissa desde o início da operacionalização do pagamento do benefício. Para tanto, o Ministério da Cidadania firmou acordos de cooperação técnica com diversos órgãos dos três Poderes, incluindo as áreas de investigação e controle, para troca de informações, conhecimentos e bases de dados.”

No fim de 2020, afila de espera para ingresso no Bolsa Famílias e aproximava de 1 milhã ode famílias, segundo dados obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação. Procurado, o Ministério da Cidadania não revelou o atual tamanho da fila. Mas informou que, de janeiro para fevereiro, foram incluídas 200 mil famílias, enquanto outras 249.002 tiveram o benefício bloqueado, suspenso ou cancelado. Os casos de bloqueio ou suspensão não implicam saída imediata do programa. de cancelamentos, foram 168 mil.

A pasta explicou, em nota, que “os fluxos de saídas e novas entradas do programa estão relacionados principalmente aos processos de averiguação e revisão cadastral, que foram suspensos inicialmente de março a dezembro de 2020, em razão da pandemia.”