O Globo, n. 31982, 28/02/2021. País, p.7

 

 

No mês de estreia como vice, deputado marca diferenças com Lira

Marcelo Ramos rejeita papel de opositor, mas deixa claro que alinhamento com o governo Bolsonaro será “seletivo”

 

PAULO CAPPELLI E JUSSARA SOARES

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A bênção do presidente Jair Bolsonaro à eleição de Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara parece até agora não intimidar o vice-presidente da Casa, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), que prefere adotar um alinhamento seletivo com o Palácio do Planalto. Nos últimos dias, ele criticou o decreto que amplia a circulação de armas e afirmou que Daniel Silveira (PSL-RJ), aliado do clã Bolsonaro, cometeu um “crime gravíssimo” ao insultar ministros do Supremo Tribunal Federal e defender o AI-5, ato baixado pela ditadura que limitou direitos no país. A postura contrasta com a de Lira, que, até o momento, mostrou total sintonia com o governo, retribuindo o apoio recebido durante a campanha.

—Tenho 100% de alinhamento em tudo o que é racional —afirma Ramos. O parlamentar tem 47 anos, é advogado e foi vereador em Manaus e deputado estadual n o Amazonas —já foi filiado ao PCdoB entre 2000 e2009. Ele diz não ser contra debater as pautas de costumes, bandeiras de campanha do presidente, mas defende que esta não é a hora.

—Qualquer coisa que não seja debater vacina, comida, auxílio e economia é irracional —disse ao GLOBO. Ramos, contudo, rejeita o papel de contraponto, na Mesa Diretora da Câmara, à boa relação de Lira com o Executivo. Na mesma semana em que criticou o decreto de armas, circulou pelos ministérios da Economia, para discutir auxílio emergencial, e de Minas e Energia, para alinhavar a MP da Eletrobras. Como presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência, aprovada em 2019, já transitava pelos gabinetes do governo.

—Quando falei das armas, chegaram mil mensagens de um setor mais extremado do bolsonarismo me esculhambando. Falam: “O povo quer armas”. Quem deu procuração a essa turma para falar pelo povo? Pergunta para o cara que está passando fome se ele está preocupado com isso. Pergunta ao cara que precisa de oxigênio na UTI se quer arma ou oxigênio — argumentou, ressaltando se tratar de uma fatia pequena e barulhenta do eleitorado de Bolsonaro.

Ramos é de Manaus, que, no início de janeiro, entrou em colapso por falta de oxigênio para atender pacientes com Covid-19. Às quintasfeiras, costuma voltar para a capital amazonense, onde vivem a mulher e os três filhos —de 23, 7 e 5 anos. Durante a pandemia, perdeu amigos e a avó por causa da doença — aos 93 anos, ela morreu na véspera de ele ser eleito vicepresidente da Câmara. A morte já o havia desafiado outras vezes. A primeira, aos 12 anos, quando viu o pai sucumbir a um ataque cardíaco na beira de um campo de futebol. E em 2004, quando perdeu a filha Maria Carolina aos três meses, por meningite.

O nome da menina está tatuado nas costas junto com o poema “A Janela Encantada”, do amazonense Thiago de Mello.

Em Brasília, Ramos se dedica ao crossfit e às corridas antes de encarar a rotina na Câmara e os jantares para construir acordos políticos. Começou a praticar esporte para perder peso, há dez anos, e, desde então, participou de competições de triatlo e maratonas. Gosta de livros de política e, na televisão, acompanha futebol. Na torcida, é rival de Lira: o presidente é rubro-negro; o vice, vascaíno.

 

REPERCUSSÃO

Na primeira bola dividida que quicou na Câmara este ano, Lira e Ramos chutaram para lados opostos. Ao saber que Bolsonaro havia editado por decreto, sem consulta ao Congresso, o texto que amplia a circulação de armas no país, o vice disparou no Twitter: “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência do Poder Legislativo”.

Um dia depois, Lira se manifestou publicamente em defesa de Bolsonaro, argumentando que o presidente não havia extrapolado sua competência. Ramos, então, procurou Lira para pedir desculpas com uma autocrítica a tiracolo: disse ao presidente da Câmara que deveria tê-lo consultado antes de se manifestar publicamente sobre a questão. Apesar da divergência com Lira, Ramos nega que repetirá na Câmara a relação tumultuada entre Bolsonaro e seu vice Hamilton Mourão:

—Lira teve comigo o cuidado que não tive com ele, me ligou para dizer que iria rebater meu posicionamento. Eu preciso ser mais cauteloso. Hoje minha fala, como vice-presidente da Câmara, tem outra repercussão. Posso divergir em votações, mas jamais vou confrontá-lo nas questões internas da Casa.