Correio Braziliense, n. 21112, 14/03/2021. Política, p.2

 

Efeitos da polarização na corrida para 2022

PODER » Retorno de Lula ao cenário político, além de complicar os planos de Jair Bolsonaro para a reeleição, diminui o potencial de voto de candidatos de esquerda e do centro, segundo especialistas. Combate à pandemia e crise econômica serão temas centrais

Israel Medeiros

 

Dois episódios ocorridos na última semana mudaram o cenário político para 2022. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin de anular as condenações do ex-presidente Lula na Lava-Jato em Curitiba e o retorno político do ex-presidente, com um discurso veemente contra o atual ocupante do Planalto, modificaram o tabuleiro eleitoral. A reaparição de Lula aprofundou a polarização de 2018, afetando a candidatura de candidatos da esquerda ou do centro. E tornou mais difícil a disputa para o Palácio do Planalto.

O cenário indefinido na corrida eleitoral de 2022 está evidente. Na última semana, a pesquisa Atlas indicou que Jair Bolsonaro perderia em um eventual segundo turno contra Lula. O presidente teria cerca de 38,8% dos votos contra 44,9% do petista. Bolsonaro também perderia para Ciro e Mandetta, que conquistariam 44,7% e 46,6% dos votos, respectivamente; Bolsonaro ficaria 37,5% e 36,9% das preferências dos eleitores. A margem de erro do levantamento é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Para o levantamento, foram ouvidas 3.721 pessoas entre os dias 8 e 10 de março.

Para o cientista político Eduardo Grin, da Fundação Getulio Vargas, Bolsonaro é o melhor cabo eleitoral de Lula e vice-versa. Ele entende que ainda há forte rejeição ao PT na sociedade. Mas, diferentemente da eleição de 2018, o adversário não é mais Fernando Haddad (PT)."Em 2018, a rejeição do PT era alta. A sociedade tinha uma agenda muito forte de combate à corrupção e Lula estava preso. Em 2022 será um cenário muito diferente. Bolsonaro vai chefiar um país que não terá saído da crise econômica. Ele abandonou as bandeiras de campanha e há indícios de corrupção na família dele. Então chega fragilizado em 2022", comenta.

Eduardo Grin acredita que a estratégia principal do petista deve ser comparar o atual governo, envolvido em uma grave crise econômica, com administração lulista, marcada por conjuntura mais favorável à geração de empregos. Para ele, o candidato que melhor conseguir se posicionar ao centro terá mais apoio. "Vamos ter dois polos: um é o da extrema direita, de Bolsonaro. E o centro fica livre para o Lula. Ele já ocupou esse espaço", avalia.

 

Doria e Ciro
Nesse cenário, avalia Grin, se os partidos de centro quiserem ser competitivos, devem apresentar logo seus candidatos. No caso do PSDB, o cientista político acredita que o governador de São Paulo, João Doria, enfrenta dificuldades. "Doria é governador de São Paulo, ninguém o conhece nacionalmente. Outro desafio dele é convencer o partido que quer ser candidato", observa.
Grin também vê uma perda de força de candidaturas como a de Ciro Gomes, (PDT), que pode se isolar politicamente. Ex-ministro e ex-governador, Ciro se apresenta como parte de uma esquerda responsável e alternativa. Foi rápido ao afirmar que não está à disposição do PT. "Não contem comigo para esse circo macabro", disse ele em entrevistas ao UOL e à Band News na última semana.
O cientista político Márcio Coimbra também vê uma tendência de isolamento de Ciro. "O voto da esquerda tradicionalmente vai com o Lula, não com o Ciro. Ele carrega uma coisa muito ruim, que é o fato de soar como o Bolsonaro da esquerda. E essa eleição, assim como nos EUA, vai ser a eleição de quem conseguir se colocar ao centro. Logo, se for entre Bolsonaro e Lula, quem ganha é Lula", afirma.

Coimbra observa, no entanto, que um candidato de centro seria capaz de tirar Bolsonaro do segundo turno se agradar o eleitorado. "É preciso saber separar o petismo do lulismo. Tem muita gente que não é petista, mas vota no Lula. Ele deve ter seus 25% no primeiro turno, isso o colocará no segundo. E Bolsonaro estará longe de quatro linhas que deram as eleições para ele em 2018: a Lava-Jato, os liberais, conservadores e antipetistas. Esse pessoal, por excelência, não vota no Bolsonaro, vota numa terceira via", indica o especialista.

Coimbra destaca, ainda, que a pandemia deve ser um dos pontos centrais dos debates para o pleito de 2022. "Dentro da saúde, claro, a conduta do governo federal será um desses pontos. E o outro será certamente a economia. A economia poderia ter se recuperado melhor. Então esse é outro ponto importante, porque o bolso das pessoas vai chegar vazio à eleição", completa.

 

 

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LUIZ CARLOS AZEDO - Nas entrelinhas.

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O príncipe audacioso

Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médice (1449 1492), antes de ser transformada num ducado hereditário pelo papa Clemente II, em 1532. Não há texto mais lido pelos políticos do que O Príncipe, sua obra-prima. A razão é simples: Maquiavel trata da conquista e da preservação do poder. Uma de suas edições mais interessantes, por exemplo, é a comentada por Napoleão Bonaparte, que esbanja bom humor e ironias. Nem por isso deixou de perder a guerra contra Rússia e, depois, contra os ingleses, em Waterloo, na Bélgica.

Uma das lições de Maquiavel é sobre os príncipes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù). Esses são os que têm mais dificuldade para se manter no poder quando as circunstâncias mudam. Parece o caso do presidente Jair Bolsonaro. Não se pode dizer que sua ascensão ao poder não teve grande preparação. Teve, sim; por anos a fio, Bolsonaro cultivou a representação política de certas corporações e grupos de interesse — militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros —, além de fazendeiros.

Mesmo assim, isso não seria suficiente para chegar à Presidência, embora lhe garantisse uma base de apoio muito ativa. Foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a perda de poder aquisitivo causada pela revolução tecnológica e recessão econômica. Um episódio imprevisto praticamente decidiu o rumo da campanha eleitoral de 2018: a facada que levou em Juiz de Fora. O atentado tresloucado praticamente zerou a rejeição que sofria em certos segmentos, que o demonizavam e reforçou o sebastianismo de quem já o considera um mito.

Havia também um internacional muito favorável à eleição de Bolsonaro, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa. Todos surfavam a crise das democracias representativas e o aprofundamento das desigualdades provocadas pela globalização. A situação agora é completamente diferente. A pandemia de covid-19 virou tudo de pernas para o ar. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais.

 

Reeleição

A pandemia nos revela que Bolsonaro tem mais dificuldades para se manter no poder num cenário adverso do que teria se tivesse chegado ao governo pela Virtù. Seu governo é um fracasso sanitário e econômico. Sustenta-se pelas regras do jogo democrático e pela opção inteligente dos generais do Palácio do Planalto, que operaram a aliança com o Centrão, em favor de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na disputa das Mesas da Câmara e do Senado, respectivamente. Também puxaram o freio de mão no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF).

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A anulação de suas condenações pelo ministro Edson Fachin, fez de Lula uma alternativa de poder, repercutindo em todo o cenário político. O que pode mudar esse jogo é o surgimento de um príncipe audacioso, que rompa a polarização entre Bolsonaro e Lula, o que não é nada fácil. As alternativas são governador de São Paulo, João Doria (PSDB); o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); e o apresentador da TV Globo Luciano Huck. O problema é que isso não depende só da vontade de cada um; na democracia, quem escolhe o príncipe audacioso é o povo.