O globo, n. 31976, 22/02/2021. País, p. 6

 

Flexibilização de regras agrava falta de controle sobre armas no país

Pedro Capetti

22/02/2021

 

 

Crescimento de equipamentos em circulação contrasta com baixo investimento em sistema de controle

A flexibilização do mercado armamentista vai aprofundar o apagão do controle desses equipamentos no Brasil, hoje nas mãos do Exército, Polícia Federal (PF) e forças de seguranças estaduais. Ao passo que os últimos decretos do presidente Jair Bolsonaro permitem que cada vez mais armas entrem em circulação, travas importantes de vistorias foram retiradas da previsão legal e sistemas que deveriam facilitar o controle não são interligados e apresentam vulnerabilidades.

As mudanças ocorrem em meio a falta de investimentos em sistemas de controle, além do afrouxamento de regras que não permitem flagrantes na apuração de eventuais irregularidades. A autorização para que atiradores e caçadores registrados comprem até 60 e 30 armas, respectivamente, sem necessidade de autorização expressa do Exército, deverá pressionar ainda mais o controle desses equipamentos, na visão de especialistas.

Hoje, o país já enfrenta dificuldade de monitorar e rastrear armas, cujo histórico envolve desvios, furtos e roubos. Dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indicam que o número de apreensões vem caindo anoa a nono país, ao passo que a quantidade de armas registradas cresce exponencialmente.

As novas regras de controle pelo Exército, que deverá avisar aos atiradores da realização de vistorias com 24 horas de antecedência, prejudicam qualquer flagrante de irregularidade, um dos principais meios de fiscalização. Em 2020, o Ministério Público em São Paulo descobriu que um homem com registro de CAC vencido era o responsável por guardar armas e munições para uma facção da capital paulista.

A exclusão de itens importantes da lista de produtos controlados pelo Exército, incluindo projéteis, máquinas e prensas para recar gade munições, carregadores e miras telescópicas, não permitirá que as autoridades saibam quem efetivamente comprou e onde estão tais produtos. A possibilidade de clubes de tiro concederem laudos de aptidão, por sua vez, retira prerrogativa da PF de avalizar essa licença, ignorando critérios técnicos da capacidade do usuário de ter uma arma.

FERRAMENTAS EM FALTA

Diante das mudanças, especialistas afirmam que, se o compartilhamento dos dados entre órgãos já não ocorre de forma efetiva, com mais armas em circulação a capacidade de investigação ficará ainda mais prejudicada. PF e Ministério Público Federal (MPF) já assumiram que as ferramentas para monitorar o mercado hoje são ineficientes. Por todo o país, registros de investigação que envolvem falhas dos sistemas atuais se espalham.

— Temos um aumento de armas sem a correspondente infraestrutura necessária e estamos reduzindo a capacidade do Exército e da PF em fazer a fiscalização, que já era pequena —diz Melina Risso, do Instituto Igarapé.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), finalizada em 2017, já apontava fragilidades dos controles internos do Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC). Um acordo para melhorias foi feito, mas avança lentamente segundo dados apresentados pelos militares ao TCU em novembro.

Há 17 anos, PF e Exército tentam realizar a integração dos dois sistemas que registram armas no país, mas sem sucesso. Uma promessa de ligação dos dois sistemas foi feita em 2019 por Bolsonaro, mas ainda não saiu do papel, apesar de constar em decreto. Desde setembro, quando o prazo venceu, o Exército alega que “os ajustes finais para a conclusão da integração digital dos sistemas em tela estão sendo realizados”. Passados quase seis meses, a situação segue a mesma. A falta de acesso aos sistemas básicos é um dos maiores empecilhos para que a PF seja favorável às medidas adotadas pelo governo.

No primeiro semestre de 2020, os registros de apreensão caíram 2,2% na comparação com o mesmo período de 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em quatro anos, a queda é de 13%. Já o número de novas armas registradas praticamente dobrou em um ano. Pesquisas mostram que parte das armas do mercado legal migram para o crime organizado ao longo do tempo, o que preocupa especialistas.

Ivan Marques, do FBSP, explica que isso decorre, entre outros fatores, a da falta de incentivo às corporações para que essas operações sejam feitas. Os impactos podem ser sentidos na taxa de homicídios, cujo índice voltou a subir em 2020 após dois anos de queda, segundo dados do Monitor da Violência do G1

Sem investimento, os gargalos vão se multiplicam. A Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, responsável por fiscalizar os CACs e assuntos relacionados a munições e equipamentos, sequer consegue dar conta de cumprir os prazos de análise de documentação dos atiradores. Somente o número de clubes de tiros a ser fiscalizado passou de 151 para 1.345 em apenas um ano. Já o número de CACs quase quintuplicou desde 2014.

A modernização de sistemas de fiscalização também está distante. Atualmente, o Sicovem, sistema do Exército por agregar dados de venda de munições do país, é gerenciado pela CBC, principal vendedora de munições do país, que doou o sistema para a corporação, que tem como função investigá-la. Especialistas enxergam conflito de interesse. Por outro lado, a PF alega não ter acessoa o sistema, fundamental para investigações.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Para Lira, decreto é tema do Congresso, não do STF

Paulo Cappelli

Bruno Goés

Francisco Leali

Aguirre Talento

22/02/2021

 

 

Parlamentares buscam barrar atos de Bolsonaro que reduziram controle sobre armamento no país

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), defendeu que uma eventual derrubada dos quatro novos decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro sobre armas de fogo deve ser feita, se obtida maioria dos votos, pelo Congresso, por meio de um projeto de decreto legislativo, e não por eventual decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Parlamentares e partidos que discordam das medidas já acionaram tanto o Congresso, apresentando decretos legislativos, como o Supremo, que recebeu uma representação do PSB. O argumento é que os decretos do presidente invadem atribuições do Congresso.

Lira já afirmou que, pessoalmente, discorda dessa avaliação. Ele ainda não acertou com líderes partidários da Câmara quando a Casa vai avaliar os decretos legislativos apresentados. Mas afirmou que este é o caminho para eventual barração dos atos.

— Se o decreto tiver que ser desmanchado, será por um PDL (projeto de decreto legislativo). Não deveria ser por uma ação de inconstitucionalidade ou pelo Supremo — afirmou o presidente da Câmara em entrevista ao GLOBO no último sábado.

Como mostrou O GLOBO na semana passada, os decretos de Bolsonaro encontram resistência de parlamentares do Centrão e lideranças evangélicas no Congresso que formam a base de sustentação do presidente.

Lira tem afirmado que não há ilegalidade.

—Não houve decreto novo, ele alterou decreto já existente que nós, na lei que aprovamos, demos a ele a condição de regulamentar por decreto —disse ao GLOBO.

PEDIDO DE INTERVENÇÃO

Ontem, o ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann enviou uma carta aberta aos ministros do STF pedindo que a Corte intervenha nos decretos. Jungmann comandou as duas pastas durante o governo de Michel Temer (MDB).

Na carta, Jungmann argumenta que permitir circulação de mais armas aumenta as estatísticas de homicídio e de crimes violentos, impulsionam o crime organizado e atendem aos interesses do tráfico de drogas. Também diz que historicamente o armamento da população “serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado” e foi um embrião para o fascismo e o nazismo.

— É iminente o risco de gravíssima lesão ao sistema democrático em nosso país —defende o ex-ministro.