O globo, n. 31973, 19/02/2021. Mundo, p. 23

 

Na rota do tráfico

Cleide Carvalho

19/02/2021

 

 

Com 600 imigrantes barrados pelo Peru, Cidade no Acre decreta calamidade

Se Brasiléia, no Acre, serviu há 10 anos como porta de entrada no Brasil para haitianos que fugiam dos estragos do terremoto que matou cerca de 220 mil pessoas em seu país, agora a vizinha Assis Brasil enfrenta o mesmo dilema, em rota oposta. Centenas de imigrantes se aglomeram no município na tentativa de entrar no Peru.

A Secretaria de Justiça e Segurança do Acre calcula que pelo menos 600 pessoas estão no pequeno município, de 7.500 habitantes, porque o país vizinho não permite que cruzem a fronteira. Devido à pandemia da Covid-19, as autoridades peruanas fecharam as fronteiras com o Brasil em março do ano passado. Na quarta-feira, a Prefeitura de Assis Brasil decretou calamidade pública, à espera de obter ajuda para lidar com a situação.

O problema é que o Acre entrou na rota internacional de imigração. Pela BR-317, conhecida como Estrada do Pacífico ou Interoceânica, centenas de pessoas deixam o Brasil na esperança de alcançar a rodovia Pan-Americana, uma malha rodoviária que vai do Chile até o Alasca, nos Estados Unidos. Com a saída de Donald Trump do governo americano, e a perspectiva de uma política mais acolhedora aos imigrantes com o democrata Joe Biden, o intenso comércio de entrada ilegal em solo americano voltou a ficar aquecido.

DOIS ‘COIOTES’ PRESOS

Os imigrantes chegam ao Acre pelo aeroporto de Rio Branco. Seguem para Assis Brasil de táxi ou carro de aplicativo, muitas vezes acompanhados por um guia. Apenas nesta semana, dois homens foram presos.

O secretário de Justiça e Segurança do Acre, Paulo Cézar Rocha dos Santos, afirma que os dois são “coiotes”, espécies de guias para os imigrantes sem documentos.

Na última segunda-feira, um peruano foi abordado na BR-317 pelo Grupo Especial de Fronteiras num táxi, suspeito de aliciar imigrantes haitianos. Ele estaria acompanhando um grupo de 80 haitianos que viajaram de São Paulo para Rio Branco. Foram apreendidos R$ 60 mil em dinheiro, dólares e soles( a moeda peruana ). O homem disse que apenas estava no mesmo voo dos haitianos e que visitaria parentes em Porto Maldonado, no Peru, mas não conseguiu comprovar a versão e foi encaminhado para a Polícia Federal.

Na quarta-feira, outro peruano foi detido com US$ 15 mil, também na BR-317, entre as cidades de Brasiléia e Assis Brasil. Ele também disse ter viajado para o Acre no mesmo voo que levou a Rio Branco dezenas de imigrantes e não comprovou a origem do dinheiro. Os celulares que ele levava foram apreendidos para perícia.

O governo do Acre afirma que, além de haitianos, estão em Assis Brasil senegaleses, venezuelanos, argentinos e chilenos.

—A BR-317 se transformou numa rota consolidada de imigração e tráfico de pessoas. Estamos vendo a chegada diária de estrangeiros na região. São 50 a 60 pessoas por dia. Primeiro achamos que era refluxo de imigrantes que vieram para o Brasil, mas estamos enfrentando uma crise migratória —disse Santos.

O secretário de Justiça e Segurança do Acre afirma que o Brasil deixou de ser atraente para imigrantes, mas não fechou fronteiras, agora em uso por diversos grupos. Ele se refere ao alto desemprego no país e ao grande número de mortos pela Covid-19. Ele teme que a situação de saúde se agrave na região. O único hospital que atende pacientes com coronavírus na fronteira é em Brasiléia.

—Corremos o risco de, além da crise migratória, enfrentar uma crise sanitária por causa da Covid —completa.

ITAMARATY SEM SUCESSO

Santos afirmou que mulheres e crianças foram abrigadas em escolas e igrejas de Assis Brasil. Os homens fazem protestos na ponte do município que liga Brasil e Peru. Os grupos também bloquearam a passagem de caminhões-tanque que vão do Peru à Bolívia pelo Brasil. A aglomeração de imigrantes em Assis Brasil tem ainda outra explicação — as rotas clandestinas pelos rios são inviáveis por ser época de cheias, com corredeiras fortes tornando a travessia arriscada.

O governo do Acre recorreu ao governo federal parara negociar com o Peru a abertura da fronteira. O Itamaraty informou que o chanceler Ernesto Araújo conversou com o colega peruano, Allan Wagner, anteontem, e que ele reiterou que a divisa não será aberta para estrangeiros não residentes. Recentemente, com o agravamento da crise sanitária no Brasil, as autoridades peruanas reforçaram o controle migratório, incluindo entre Assis Brasil e Iñapari.