Valor econômico, v. 21, n. 5194, 24/02/2021. Brasil, p. A4

 

“Lockdown” ajuda, mas vacina é crucial, defende Temporão

Leila Souza Lima

24/02/2021

 

 

Crítico aberto da postura do governo Jair Bolsonaro diante da crise de saúde global, ele vê um país fragmentado na resposta à pandemia

A adesão crescente de cidades brasileiras a toques de recolher para conter o avanço do coronavírus reflete o desespero de governantes ao ver o sistema de saúde à beira do colapso. Mas a medida não é uma bala de prata para resolver a epidemia, diz o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. Ele afirma que decretar “lockdown” produz efeitos localizados, ao achatar temporariamente os picos da epidemia, mas esclarece que só a vacinação em larga escala pode trazer solução mais perene, já que o novo coronavírus veio para ficar.

“Essa medida a essa altura evidencia o desespero dos gestores municipais. Tudo o que vemos nesst momento é uma síntese macabra do que deixamos de fazer em 2020. Sem vacinar parcela significativa da população, a agonia só será prolongada”, disse.

Temporão pondera que, ainda que nenhuma cidade brasileira tenha adotado até recentemente o lockdown como de fato se caracteriza, o recurso é importante e deve ser usado quando necessário. Mas sustenta que, a essa altura, só vacinação que cobrisse ao menos metade da população no prazo de três, quatro meses produziria resultados expressivos, principalmente com a circulação das variantes mais transmissíveis.

Crítico aberto da postura do governo Jair Bolsonaro diante da crise de saúde, ele vê um país fragmentado na resposta à pandemia e entregue a uma liderança sem visão estratégica e que operou sempre negando a realidade. “A economia também em nenhum momento esteve a serviço da saúde, de salvar vidas. O auxílio emergencial foi interrompido, então tem muita gente na miséria, em subemprego ou sem qualquer fonte de renda”, observa Temporão, para ilustrar o quanto é difícil hoje fazer a população aderir a medidas protetivas.

Morando no Rio, ele conta que esteve no interior do Estado há poucos dias para descansar e constatou que ninguém mais usa máscaras. “Parece que as pessoas desistiram. Na cidade onde estive, só vi uso de proteção dentro do mercado”, descreve o ex-ministro.

Para ele, a situação epidemiológica do país hoje pode ser considerada mais grave que no ano passado. Enquanto isso, o Brasil ainda esbarra em burocracias ao tentar fechar acordos para aquisição de mais imunizantes. “Mas sabíamos desde fevereiro de 2020 que a única forma de sair da pandemia seria contando com mais vacinas.”

Segundo Temporão, o país tinha alguns caminhos a seguir, e só obteve êxito até agora numa direção, ao estabelecer parcerias com laboratórios internacionais para transferência tecnológica. Ainda assim, ressalta, por iniciativa da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, e do Instituto Butantan, de São Paulo.

Para ele, o Brasil errou ao aderir à aliança mundial Covax com atraso e ao optar por adquirir a cota mínima de imunizantes, ou seja, quantitativo para cobrir só 10% da população. Cita que o país não investiu em negociações prévias de compra de vacinas com farmacêuticas, tendo estudos e produção acompanhados por equipe técnica constituída no âmbito do Ministério da Saúde. E que tampouco investiu numa plataforma de produção doméstica.

Ele elogia as iniciativas do Butantan e da Fiocruz, mas ressalva que após um mês de campanha nacional, em vez de 6 milhões de brasileiros, 30 a 40 milhões de pessoas poderiam estar protegidas se o país contasse com diferentes vacinas e em quantidade. “Fácil, com tranquilidade”, diz ele, que condiciona a lentidão unicamente à falta diligência do governo federal.

“No mundo, 16% da população mundial já compraram 60% das vacinas disponíveis. Estamos entre os países que estão imunizando, mas poderíamos vacinar 100 milhões em três, quatro meses. Estamos fazendo operação a conta-gotas. Então, você vê essas medidas desesperadas, e o vírus continua a circular, com as variantes agora mais transmissíveis.”

Temporão destaca ainda que o Plano Nacional de Imunização (PNI) é reconhecido como o melhor do mundo e que o país tem condições para imunizar em massa e potencial produtivo. Mas reafirma que essas capacidades foram sabotadas pela negação da ciência e pela falta de coordenação nacional.