O Estado de São Paulo, n.46396, 27/10/2020. Economia, p.B5

 

Inclusão digital

Ana Clara Abrão

27/10/2020

 

 

A pandemia da covid-19 é uma tragédia humana global cujos efeitos perdurarão por vários anos. Ela colocou em xeque nossa capacidade de lutar contra uma epidemia que acelerou e matou – e continua a matar –, apesar de esforços científicos e econômicos inéditos. Ela amplificou ainda mais a desigualdade social, principalmente onde esse já era o maior dos problemas, como é o caso do Brasil. Mas não poupou do seu agravamento também onde não era.

A pandemia jogou milhões de mulheres no desemprego, devolvendo avanços de representação feminina no mercado de trabalho que levamos décadas para conquistar. O fechamento das escolas e a falta de prioridade na sua reabertura segura criaram uma fenda na aprendizagem de jovens e crianças no mundo todo que pode nos custar uma geração – principalmente, nos países mais pobres e desiguais. Alterou comportamentos, padrões sociais, regras de convivência e acelerou tendências que engatinhavam e outras que só se imaginavam. O processo de digitalização, que já vinha acontecendo, foi acelerado de forma notável. Desde a rápida migração de soluções analógicas corriqueiras para o mundo digital, até a consolidação das atividades de trabalho remoto impostas pelo isolamento social, temos hoje as mais diversas e complexas funções sendo exercidas em frente a uma tela. Nesse processo, fala-se muito de inclusão digital e financeira como grandes conquistas. Será mesmo? Não necessariamente.

O Brasil é considerado um dos países mais inclusivos digitalmente do mundo. Estamos na 46.ª posição, o que nos garante a segunda colocação na América Latina, no ranking elaborado pela The Economist Intelligence Unit (The Inclusive Internet Index), atrás apenas do Chile, na 13.ª posição. Somos mais de 150 milhões de brasileiros que usam a internet por meio de um smart fone ou de um algum dispositivo que permita acesso a todo tipo de transações e interações, inclusive de pagamentos. Mas inclusão vai muito além de acesso ou, no caso digital, é muito mais do que a posse e uso de um dispositivo e seu conjunto de soluções. Inclusão digital, como qualquer tipo de inclusão de verdade, passa necessariamente por educação. Educação digital ou cibernética.

Assim como inclusão financeira requer educação e discernimento – inclusive para garantir o uso adequado das soluções disponíveis à população bancarizada –, ao mesmo tempo que se amplia a oferta de soluções digitais, mais as pessoas dependem de conhecimento específico para poderem se beneficiar desse acesso e das possibilidades que se abrem, e reduzir os riscos associados à universalização no acesso. Do contrário, não só se limitam as possibilidades – como acontece no mundo financeiro –, mas se abre o caminho para o mau uso, para fraudes, para explorações e riscos, inclusive sistêmicos.

Aumentar o nível de educação digital de uma população é, portanto, uma maneira de reduzir os incidentes de segurança, individualmente e sistemicamente. Já me desculpando pelo proselitismo, cito um estudo que acaba de ser lançado pelo Oliver Wyman Forum, pois é disso que se está falando quando se avaliam as políticas públicas e privadas de educação digital. O índice de Educação e Alfabetização em Risco Cibernético (CLE, na sigla em inglês para Cyber-risk Literacy & Education Index) tem como objetivo principal avaliar o nível de educação digital da população e o comprometimento das políticas públicas e privadas com esse tema.

O Brasil, de forma pouco surpreendente, ocupa a 42.ª posição entre os 50 países analisados. Somos, portanto, um dos países de menor nível de educação digital – e, portanto, na capacidade da população de lidar com as soluções digitais de forma segura – dentre um conjunto heterogêneo de países. Destacam-se positivamente Suíça, Cingapura, Reino Unido, Austrália e Holanda, países onde o uso da internet em escolas é amplo e o tema digital é disseminado de forma horizontal nas diversas disciplinas. São países onde há uma integração natural entre aprendizagem e expansão digital nos sistemas educacionais, nos mercados de trabalho e nas políticas governamentais.

Entre os cinco "pilares" do índice (motivação da população; políticas públicas; sistema educacional; mercado de trabalho; inclusão da população), o Brasil está melhor do que a média apenas no pilar de políticas públicas e graças à recentemente lançada Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (E-ciber), que aborda os objetivos para aprimorar o nível de educação digital e em riscos cibernéticos. Um ponto de partida de um longuíssimo caminho que esbarra, como sempre, na nossa (in)capacidade de execução.

Ainda padecemos com problemas básicos, como falta de energia, condições físicas minimamente adequadas e escassez de insumos básicos em escolas. Sofremos com a falta de investimentos em capacitação dos nossos professores. Como falar de educação digital e segurança cibernética nesse contexto? O grande problema, como em tantos outros no nosso País, é que, enquanto não houver espaço para isso e para outros temas que avançam mundo afora, estaremos sempre falando de exclusão, e não de inclusão.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA