O globo, n. 31933, 10/01/2021. Artigos, p. 3

 

Suprema Vigilância

Luiz Fux

10/01/2021

 

 

Na tarde de 19 de novembro de 1863, Abraham Lincoln, então presidente dos Estados Unidos, proferiu o seu histórico Discurso de Gettysburg, apaziguando uma nação que vivia em verdadeira Guerra Civil.

Como bem destacado por Lincoln, o único caminho para que o país renascesse das disputas pela secessão consistiria em preservar o espírito democrático do povo americano, sempre guiado pela construção de “um governo do povo, pelo povo e para o povo”.

Essa visão de democracia tem como essência a prevalência da soberania popular, valor maior cujo ápice é o processo eleitoral, período no qual a população vai às urnas para eleger homens e mulheres que representarão a vontade popular e defenderão o texto constitucional.

Com efeito, como bem adverte o filósofo americano Reinhold Niebuhr, “a capacidade do homem para a justiça faz a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça faz a democracia necessária”. Por isso mesmo, pressuposto básico da sustentabilidade da democracia é o respeito às regras do jogo, ainda quando seu resultado não seja compatível com nossas visões de mundo. O dissenso é necessário, mas a discórdia é nociva.

Os acontecimentos da tarde de 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos, chocaram o mundo e desafiaram a máxima corriqueiramente ecoada de que as democracias desenvolvidas estão a salvo de fortes turbulências. O que se viu foi violência, brutalidade, desrespeito às instituições e extremismo.

A tarde de 6 de janeiro, muito diferente daquela em que o presidente Lincoln proferiu seu discurso histórico, parece comprovar o argumento evocado por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em seu best-seller “Como as democracias morrem”: a conservação da democracia pressupõe a tolerância ideológica mútua, o pluralismo político e, acima de tudo, a reserva institucional de líderes políticos em face da soberania popular.

Essa amálgama, que transcende partidos e ultrapassa ideologias, é o pressuposto de uma sociedade sadia. Quando esse equilíbrio é quebrado, não só a Constituição se rasga, como as próprias “grades de proteção” da democracia são esfaceladas.

Esse diagnóstico é tão esclarecedor como alarmante. Em se tratando de sustentabilidade democrática, não há nada automático, natural ou perpétuo. O sentimento democrático precisa ser vigilantemente alimentado e reforçado. Assegurá-lo demanda a uma nação mais do que dispor de regras formais e instituições políticas bem desenhadas. Em verdade, os valores democráticos devem ser diuturnamente abraçados pelo coração e pela mente dos cidadãos, fazendo-se presença constante nas práticas políticas e culturais de cada sociedade.

E importante repetir sempre: não há democracia sem respeito às instituições. Elas garantem os direitos mais básicos do cidadão e permitem o equilíbrio necessário para o bem-estar de toda a sociedade, assegurando o espaço de cada área essencial: economia, saúde, meio ambiente, social e outras.

Qualquer líder que busque subjugar as instituições — sendo elas do Judiciário, do Legislativo, do Executivo ou mesmo as privadas —, concentrando e abusando do poder a ele concedido pelo voto, deve sofrer imediata reação da imprensa livre, da sociedade crítica e dos demais poderes constituídos. Vitórias eleitorais não representam carta-branca para desígnios individualistas ou decisões arbitrárias. O governo é das leis e não dos homens.

E o Poder Judiciário tem papel essencial nesse contexto, porque cabe a ele ser o garantidor do cumprimento das leis e da Constituição. Não se pode hesitar em cumprir essa missão.

Na qualidade de presidente do Supremo Tribunal Federal, posso assegurar que a Corte, como guardiã da democracia constitucional, permanecerá vigilante para que a situação registrada nos EUA no último 6 de janeiro jamais ocorra no Brasil.

(...)

Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente do Conselho Nacional de Justiça