O Estado de São Paulo, n.46391, 22/10/2020. Metrópole, p.A13

 

Por ala ideológica, Bolsonaro desautoriza ministro e rejeita a 'vacina da China'

Camila Turtelli

Vera Rosa

Emilly Behnke

22/10/2020

 

 

A aquisição havia sido anunciada pelo próprio Ministério da Saúde anteontem. Bolsonaro ficou inconformado com o palanque dado ao governador João Doria (PSDB); nacionalidade e domicílio eleitoral deram fôlego à ação, contrária ao aval dado com apoio dos generais

O presidente Jair Bolsonaro desautorizou ontem o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, sobre a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac, produzida em parceria pelo laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantã, de São Paulo. A aquisição havia sido anunciada pelo próprio Ministério da Saúde no dia anterior. Bolsonaro ficou inconformado com o palanque dado ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), no acordo. A nacionalidade e o domicílio eleitoral da vacina acabaram ressuscitando a ala ideológica do governo, que atacou a iniciativa tomada com aval dos generais da Esplanada.

Sob pressão, Bolsonaro recuou, barrando o acerto que dava protagonismo a seu adversário, Doria. Foram várias as mensagens recebidas por ele. "Presidente, a China é uma ditadura, não compre essa vacina, por favor. Só tenho 17 anos e quero ter um futuro, mas sem interferência da Ditadura chinesa", comentou um usuário nas redes sociais. Bolsonaro reagiu em letras maiúsculas: "NÃO SERÁ COMPRADA".

Depois, em publicação no Facebook oficial, com o título "A vacina chinesa de João Doria", afirmou que "qualquer vacina, antes de ser oferecida, deverá ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa". Bolsonaro disse, ainda, que "o povo brasileiro não será cobaia de ninguém". Mais tarde, deu nova estocada em Doria. "O presidente sou eu", afirmou.

O tom sobre a eficácia científica contrasta com o discurso adotado sobre o uso da cloroquina para combater a covid19. Naquele caso, a falta de comprovação científica sempre foi minimizada. A Coronavac está na fase 3 dos testes clínicos, os mais avançados em humanos. Segundo dados apresentados esta semana, teve os melhores resultados de segurança entre imunizantes em teste. Os dados de eficácia devem sair até dezembro.

"Não se justifica um bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou fase de testagem", insistiu Bolsonaro nas redes. Segundo o ministério, o valor desembolsado seria de R$ 1,9 bilhão.

O argumento do presidente, porém, contradiz ato anterior da própria gestão. A Saúde já firmou outro acordo bilionário para adquirir uma vacina em teste. Em agosto, o presidente assinou medida provisória de R$ 1,9 bilhão para comprar 100 milhões de doses da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica Astrazeneca.

O compromisso prevê transferência de tecnologia de produção para a Fiocruz. O produto está em fase final de estudos, como a Coronavac. Vários países estão firmando acordos prévios de compra de vacinas em teste para garantir o abastecimento após o registro.

Em transmissão ao vivo na internet, o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos criticou a compra da vacina chinesa. "Temos números de casos (da doença) caindo. Tem um gasto bilionário em uma situação que não justifica o gasto", afirmou.

Doria fez ontem um périplo por Brasília e pregou o entendimento. "Agora é hora de vacinação. Não é hora de eleição", declarou, numa referência à disputa de 2022 pelo Planalto. Enquanto

Doria dava entrevista no Congresso, o ministério divulgava nota e o secretário executivo da pasta, Élcio Franco, dizia não haver qualquer compromisso com São Paulo para aquisição da Coronavac.

Franco alegou "interpretação equivocada da fala do ministro da Saúde" sobre a compra da Coronavac. Em rápido pronunciamento na TV Brasil, sem o ministro – diagnosticado com a covid – ele destacou, ainda, não haver intenção de compra das "vacinas chinesas".

Reações. O governador e sua equipe reagiram. "A vacina do Butantã é a vacina do Brasil, de todos os brasileiros", observou Doria. Para comprovar que Pazuello havia confirmado a intenção de compra, o governo de São Paulo divulgou vídeo com a íntegra da reunião. Em nota, a Secretaria da Saúde classificou como "descabida" a alegação sobre "interpretação equivocada". Doria disse que Pazuello sai "fortalecido" do episódio.

No Congresso, ao lado de parlamentares, até da base do governo, o governador posou para fotos segurando a vacina. Ele também se reuniu por quase duas horas com a presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres, para discutir protocolos de testes.

Barra Torres negou que a agência possa sofrer "pressões políticas e ideológicas" na avaliação da eficácia de vacinas.

Disse, porém, não haver data para concluir os estudos clínicos ou dar registro a qualquer um dos quatro imunizantes em desenvolvimento no País.

Pressão. Nos bastidores, Bolsonaro avaliou que Pazuello se precipitou ao anunciar o acordo. O Estadão confirmou que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-rj), filho do presidente, foi um dos que se opuseram. Mas, ao desmentir a informação, publicada pela revista Época, Carlos usou o perfil do pai no Facebook. "Estou impossibilitado de ser o "Controlador Geral da União" (...), pois momentaneamente ocupo o cargo de vereador da cidade do Rio de Janeiro!"

Não é de hoje que Bolsonaro vem sendo aconselhado a aceitar a Coronavac. Até o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), José Múcio Monteiro, de saída do cargo, conversou sobre isso com ele e com o ministro da Casa Civil, Braga Netto, há cerca de 15 dias.

Múcio, hoje também com covid-19, disse a Bolsonaro que o Butantã não era um órgão político e o aconselhou a apoiar uma vacina que não seria do governo federal, nem de São Paulo, mas da sociedade brasileira.

No dia 14, Bolsonaro bateu o martelo e, em reunião com Pazuello, deu aval para que ele continuasse as tratativas com o Butantã para o protocolo de intenção da compra de doses da vacina. Mudou de posição, porém, com a repercussão negativa entre seus apoiadores.

As críticas da ala ideológica ao acordo que foi sem nunca ter sido ultrapassaram fronteiras. "Os problemas surgem no entorno, inclusive alguns ministros, que têm "agenda própria", atacou o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, hoje no Banco Mundial, em Washington. Seguidor do escritor Olavo de Carvalho, Weintraub é expoente do chamado "bolsonarismo raiz" e adepto da teoria de que a China fabricou o vírus.

Na outra ponta, a oposição tenta capitalizar a crise. A Rede protocolou ação no Supremo Tribunal Federal para obrigar Bolsonaro a assinar o protocolo de intenções da Coronavac. Presidente do Cidadania, Roberto Freire disse que "o impeachment de Bolsonaro, um arauto da morte, se impõe".

Crítica

"O presidente sou eu." "O povo brasileiro não será cobaia de ninguém." "Não se justifica bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou a testagem."

Jair Bolsonaro

PRESIDENTE