O Estado de São Paulo, n.46388, 19/10/2020. Metrópole, p.A14

 

Homicídio cai em 2019 e tem alta em 2020

Felipe Resk

19/10/2020

 

 

Após País ter registrado a menor taxa anual da década, assassinatos avançaram no 1º semestre, chegando a 1 vítima a cada 10 minutos

Após o Brasil ter registrado em 2019 a menor taxa de homicídios da década, o número de assassinatos voltou a subir neste primeiro semestre, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados ontem. Entre janeiro e junho, o País relatou 25.712 mortes violentas, ou 7,1% a mais em relação ao mesmo período do ano passado, o equivalente a uma vítima a cada dez minutos.

Os dados fazem parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e são compilados com base em registros policiais de cada Estado. Para o índice, o Fórum considera a soma de homicídios dolosos (quando há intenção de matar), latrocínios (roubo seguido de morte), lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenção policial – por si só, este último indicador está em escalada desde 2013.

Esta é a primeira vez que o Anuário também divulga estatísticas parciais do ano corrente. Segundo o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum, trata-se de uma "excepcionalidade" que serviria para avaliar o comportamento de indicadores criminais em meio à pandemia de coronavírus. "Os esforços para obter os dados só de 2019 ou já com o primeiro semestre de 2020 eram semelhantes", diz.

Se for feita a comparação tradicional, considerando apenas os anos já encerrados, o Brasil somou 47.773 assassinatos ao longo de 2019, o que representa o segundo recuo consecutivo do índice. De acordo com o relatório, a queda de 17,7% também foi a maior registrada desde 2011. Por sua vez, a taxa de homicídios havia chegado a 22,7 casos por 100 mil habitantes, o melhor resultado da década.

Já mais recentemente, no primeiro semestre de 2020, as mortes violentas demonstraram comportamento contrário e aumentaram em 21 das 27 unidades federativas – incluindo São Paulo, historicamente responsável pela menor taxa. Para comparar, os casos só haviam subido em Rondônia em 2019.

Segundo o Fórum, a tendência se inverteu a partir de setembro de 2019 e o País acumulou nove meses de alta consecutivas. Esse cenário faz pesquisadores questionarem o quanto políticas de proteção à vida, de fato, foram implementadas. "Talvez a gente tenha perdido uma das maiores oportunidades das últimas três décadas", afirma o diretor-presidente do Fórum. "Enquanto o indicador caía, ninguém se dedicou a entender o que estava dando certo e precisava ser estimulado."

Proporcionalmente, o Ceará tem o pior resultado deste ano, com 2.340 assassinatos de janeiro a junho, e serve para ilustrar a mudança constatada. O mesmo Estado havia sido recordista de queda de homicídios em 2019. Especialistas ligam o fato à crise de segurança pública vivenciada com a greve da Polícia Militar em fevereiro. Unidades que também registraram atrito entre as forças de segurança e governos locais aparecem na sequência da tabela do Fórum. Entre elas, estão Paraíba (19,2%), Maranhão (18,5%) e Espírito Santo (18,5%). Procurado, o Estado do Ceará destacou que em setembro houve 252 registros, o menor índice de 2020.

A família de Rômulo Felix Moura, de 29 anos, assassinado no dia 24 de março em Fortaleza, é uma das tantas que ainda aguardam respostas. Um familiar de Rômulo, que pediu para não ser identificado, conta que o jovem mecânico trabalhava na calçada de casa, consertando um caminhão, às 22 horas, quando dois homens em uma moto, vestidos de preto, se aproximaram e atiraram. O caso continua sem solução.

Outra possível explicação para o incremento da violência no País é a mudança no tabuleiro de disputas territoriais do crime organizado. Com a quarentena, lideranças isoladas em presídios de segurança máxima e novos chefes nas ruas, o tráfico foi obrigado a se reinventar, segundo os especialistas. Em meio à menor oferta de voos, por exemplo, brigas por rotas de transporte da droga ou até por pontos de venda mais perto das casas podem ter afetado a curva de homicídios.

Entre os fatores gerais, Lima cita, ainda, queda de investimentos da União e a falta de articulação nacional em políticas de segurança pública. "O Brasil tem tradição de insistir no modelo baseado em dimensões operacionais, de mais armas, viaturas e recursos táticos – e menos planejamento e estratégia", diz. "A dinâmica do crime mudou, mas o nosso comportamento continuou igual."

Segundo o relatório, os gastos efetivos do governo federal com a segurança caíram 3,8% em relação às despesas de 2018, com o total de R$ 11,3 bilhões empregados. Já a participação da União na área foi de 11,9%, enquanto os Estados representaram 81,4% e os municípios, 6,7%. "O discurso de prioridade política não foi acompanhado de medidas de melhoria da qualidade do gasto e/ou do aumento de despesas com segurança pública no âmbito federal", diz.

Homicídios comuns e a letalidade policial, que tiveram aumentos individuais de 8,3% e 6% no primeiro semestre, puxam os assassinatos do País para cima. Por sua vez, os índices de latrocínio e lesão corporal seguida de morte caíram 13,6% e 7,9%, respectivamente, mas juntos só representam 4,2% das vítimas de violência. Chama atenção dos pesquisadores que a piora nas estatísticas foi percebida mesmo com a redução de outros crimes durante o isolamento social, a exemplo dos roubos a transeuntes (34%), a residências (16%) ou de veículos (22,5%).

Na contramão nacional, seis unidades conseguiram diminuir os casos – o principal recuo foi no Pará, palco de conflitos de facções e até de massacre em presídio em 2019, que agora reduziu as mortes em 25,1%. "O grande desafio é manter esses patamares de 2020, certamente pelo contexto da pandemia, que foi favorável à redução de determinados crimes", diz Brenno Miranda, presidente da Comissão de Segurança Pública da seção local da Ordem dos Advogados (OAB-PA).

Perfil. Os dados de 2019 confirmam que a maior parte das vítimas é homem, negro e jovem. Para cada mulher branca (grupo de menor risco) morta no ano passado, foram assassinados 22 homens negros (principal grupo de risco). Por faixa etária, o grupo mais afetado é o até 29 anos, com 51,5%. Os negros correspondem a 74,4% dos mortos. E as armas de fogo foram usadas em 72,5% dos assassinatos – motivo pelo qual o Fórum aponta que é preciso aperfeiçoar o controle de acesso.

Justificativa

"Em ano tão atípico, que vai marcar o século, consideramos importante oferecer essa análise. Em contexto de normalidade, a tendência é voltar a trabalhar só com os dados do ano anterior."

Renato Sérgio delima

DIRETOR-PRESIDENTE DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA