O Estado de São Paulo, n.46386, 17/10/2020. Metrópole, p.A18

 

A história de André do Rap, o homem que enganou PCC e Supremo Tribunal Federal

Marcelo Godoy

17/10/2020

 

 

Um tipo raro de bandido, chefe de um grupo ousado que procura construir a própria rede e distribuir entorpecentes

PERFIL  - André Oliveira Macedo, um dos principais líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC)

A TV de 20 polegadas ficou para o detento Cássio Clay Pereira. Calça, 4 calções, 2 blusas, 2 pares de tênis, chinelos, 2 toalhas, cobertor, 2 fronhas, 2 lençóis, 4 camisetas, travesseiro, revista, Bíblia e dois livros – A Vida de São Francisco de Assis e Sexo para Adultos, de Laura Muller. Tudo foi entregue ao preso Ronaldo Arquimedes Marinho. André Oliveira Macedo, o André do Rap, saiu só com a roupa do corpo da Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no oeste paulista.

A doação dos bens que acumulou na prisão para os colegas de cela foi o último gesto do bandido ostentação, um ato de populismo carcerário do chefão do tráfico para sua clientela. De fato, ao deixar a penitenciária, André do Rap carregava só um envelope, onde havia seu alvará de soltura, concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF) ao homem condenado a 25 anos de prisão por tráfico internacional. Eram 10h15 de sábado. Devia se dirigir, por ordem do STF, a um endereço no Guarujá (SP). Não foi. Está foragido.

A história de André do Rap, de 43 anos, é a de um tipo raro de bandido. Não por ter enganado a Justiça – como lembrou o presidente do STF, Luiz Fux. Mas porque foi acusado de enriquecer, passando para trás uma organização mafiosa, o Primeiro Comando da Capital (PCC), sem pagar com a vida. Sua história é ainda a de um grupo que, primeiro, se uniu à mais poderosa máfia da Europa, a ‘Ndrangheta, da Itália, para, em seguida, procurar construir a própria rede de distribuição de entorpecente no Velho Continente. André do Rap e seu colega Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, tornaram-se os maiores barões da droga do Brasil.

Eles respondem pela Sintonia do Tomate, o setor do tráfico internacional do PCC. Primeira organização de tipo mafioso do País, a facção tem à disposição doleiros para mandar para o Paraguai e Bolívia o dinheiro recebido pelo embarque da droga no Porto de Santos – principal centro da operação do grupo. O que poucos sabem é que o PCC entrou no radar da DEA (a agencia antidroga americana). Os investigadores já detectaram integrantes da facção – “irmãos batizados” – em Miami, que começaram a operar uma pequena rede de distribuição de cocaína.

Mas não só. Policiais paraguaios, argentinos, britânicos, holandeses, espanhóis e italianos também buscam informações sobre a atuação do cartel brasileiro. Em 2016, a DEA convidou um investigador brasileiro para que fosse até os Estados Unidos falar sobre a facção. O homem esteve em seis Estados americanos, levando informações para polícias estaduais e municipais. O convite surgiu pouco depois de o nome de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC, passar a ser ouvido pelos americanos em investigações sobre as ramificações no Peru e na Bolívia do Cartel de Sinaloa, então a mais importante organização criminosa do México, sob as ordens de Joaquín “El Chapo” Guzman.

Vida loka e rap. Mas como foi que André entrou para o crime? Ele e Fuminho se conheceram na Baixada Santista. Fuminho permaneceu 20 anos foragido, antes de ser preso em Moçambique, em 2020, e extraditado para o Brasil. Nascido em Santos, em 1977, André do Rap cresceu em Itapema, perto da Favela Portuária, no Guarujá, no litoral paulista. Em 19 de setembro de 1996, foi preso pela primeira vez. Razão: tráfico.

Tinha 19 anos. Foi levado pela PM ao 2.º Distrito do Guarujá. Dali, foi transferido para a cadeia pública da cidade, de onde foi trazido para São Paulo, onde cumpriu a pena na antiga Casa de Detenção, no Carandiru. E lá conheceu o rap, que crescia entre um grupo de detentos, do qual saíram, por exemplo, os integrantes do 509-E: Afro-x e Dexter.

Solto em 1999, André do Rap voltou a ser preso em flagrante e acusado do mesmo crime em 2003. Já havia então chamado a atenção da Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes (Dise), de Santos, que o indiciaria ainda em mais dois inquéritos nos anos seguintes. Foi durante essa nova prisão, de acordo com documentos da Inteligência Policial, que André foi batizado na facção criminosa. Era 13 de maio de 2005 quando o bandido se tornou integrante do PCC, dentro da Penitenciária de São Vicente, no litoral. Foi solto em abril de 2006, preso em 2007 e libertado outra vez em 2008.

Em liberdade, André passou a compor músicas. Começou com raps elogiando a “vida loka”, a cena do crime e a lei dos criminosos contra a “opressão do sistema” – parte de suas músicas até hoje pode ser encontrada na internet. Em uma delas, Impacto Total, André do Rap se dizia “um guerreiro armado e perigoso”, uma “mente criminosa da legião do mal”. Fazia músicas com os MCS Careca e Pixote, os “guerreiros de Itapema”. Falava em dar “justiça” e que

Deus abençoasse “os irmãos da correria”. “Não tem meio termo, quem corre no certo tá no bonde também.” André do Rap se dizia um vaso ruim de quebrar, pronto para enfrentar os “gambé (policiais)”.

Nada diferente dos funks proibidões que assolam o Rio. O traficante começou a ganhar fama e passou a promover bailes funks na quadra da escola de samba Amazonense, no Guarujá. Também passou a patrocinar um time de futebol, o MRF (Movimento Revolucionário Favelas), cuja versão musical seria o grupo ligado a André do Rap, a família MRF. É dessa época a abertura da conta do Twitter de André do Rap - com apenas 16 publicações. E assim ia a vida de músico de André, até que, em 2012, tudo começou a mudar na Baixada. Seus conhecimentos com o pessoal da estiva –os trabalhadores do Porto de Santos – o aproximaram de Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro.

Tráfico. Cabelo Duro e Fuminho estavam montando a estrutura do Tomate, quando convidaram André do Rap. Em pouco tempo, o tráfico internacional ia deixar os homens do Tomate milionários. Cabelo Duro, por exemplo, logo comprou uma cobertura duplex de 559 m² na Rua Torrinha, na zona leste da capital. O imóvel foi avaliado em R$ 3 milhões.

Carros importados e imóveis de luxo se tornariam uma constante do grupo. André do Rap, por exemplo, comprou uma lancha de R$ 6 milhões, um helicóptero de R$ 7 milhões e um Porsche – é alvo, por isso, de um inquérito por lavagem de dinheiro no Departamento de Operações Especiais (Dope). O enriquecimento de Cabelo Duro, André do Rap e de Fuminho chamou a atenção da facção paulista.

De acordo com a Inteligência da polícia, foi usando a rede do PCC para fins particulares que André do Rap e Fuminho ganharam muito dinheiro. O último se tornara sócio de Marcola. A facção então não contava com nenhum dos membros da chamada Sintonia Final, a cúpula da organização, em liberdade para fiscalizar “o proceder” de quem estava solto. Um delegado que trabalhava então na inteligência contou ao Estadão que os três

– provavelmente, com o aval de Marcola – usaram aviões do PCC, rotas da facção e obtiveram o direito de comprar droga pelo preço e prazo de pagamento generosos oferecidos ao grupo pelos produtores de cocaína na Bolívia, no Paraguai e no Peru. “Agiam como se o dinheiro fosse todo para a facção”, confirmou o promotor Lincoln Gakyia, jurado de morte pelo PCC. Segundo a Inteligência Policial, os dois traficantes passaram a usar a estrutura da facção para negócios privados – assim, 50% da droga transportada até Santos passou a ser do Tomate, e o dinheiro extra não entrava mais no caixa do PCC.

Gegê. Quando foi solto, Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, então terceiro homem da facção, recebeu a missão da cúpula de fiscalizar os negócios da organização. Gegê resolveu enquadrar Fuminho, Cabelo Duro e André do Rap. O grupo se reunia, então, em um bar no Tatuapé para acertar grandes partidas de droga – um negócio de cerca de R$ 800 milhões por ano.

Gegê proibiu que a estrutura da facção fosse usada para fins particulares. A disputa levaria ao sangrento acerto de contas em uma mata na área indígena do município de Aquiraz (CE), em 2018. Ali Cabelo Duro executou Gegê do Mangue e Fabiano Alves de Souza, o Paca, outro líder histórico do PCC. A decisão de matar os dois – creditada a Fuminho – provocou um terremoto na facção que por pouco não tragou Marcola. É que Gegê era irmão; Fuminho não. E, portanto, não poderia ter decidido matar Gegê sem a concordância da cúpula.

Na época, Fuminho sugeriu que tivesse recebido o aval de Marcola. Mesmo assim, ele, Cabelo Duro e André do Rap tiveram suas sentenças de morte decretadas pela facção. Cabelo Duro seria morto uma semana depois, fuzilado diante de um flat no Tatuapé. Fuminho e André do Rap se esconderam até que conseguiram inverter a acusação e convencer a facção de que Gegê era quem estava roubando o caixa. A sentença de morte foi suspensa, e voltaram a atuar como antigamente, sem fiscalização. “Ficam com a maior parte do dinheiro”, diz um investigador.

Prisão. Quando foi para o Dope, em 2019, o delegado Fabio Pinheiro Lopes trouxe do Deic a informação, o fio da meada que o levaria ao traficante. Tratava-se da lancha que o bandido havia adquirido por R$ 6 milhões. A polícia sabia que o traficante faria contato por telefone para pedir que a lancha estivesse à disposição quando fosse para Angra do Reis (RJ). E assim foi. Acabou preso e com ele os policiais apreenderam ainda dois helicópteros.

É que André e seus principais colegas da facção sempre se movimentavam por meio de avião ou helicóptero para se manterem longe da polícia. Fuminho, por exemplo, usava seu avião particular quando precisava se deslocar do Brasil para Moçambique, onde mantinha negócios com o governo.

Era de Moçambique que Fuminho e André do Rap preparavam o segundo maior passo da história da facção. Eles queriam construir uma rede de distribuição de droga na Europa e, assim, se verem livres do pedágio a pagar para ‘Ndrangheta e para a máfia sérvia: 40% da droga enviada pelo PCC fica nas mãos dos mafiosos do Velho Continente.

O contato italiano dos chefes do Tomate com a 'Ndrangheta havia sido preso no Operação Overseas, da PF, em julho de 2019. Estava na Praia Grande (SP), o representante da máfia calabresa na América Latina: Nicola Assisi, o Fantasma da Calábria. O filho dele, Patrick, foi preso na mesma ação. Antes da prisão dos dois, o PCC já buscava o caminho trilhado pelo supernarcotraficante mexicano Miguel Ángel Félix Gallardo, de Sinaloa, nos anos 1980: controlar a distribuição da droga após dominar suas rotas de transporte.

André foi morar na Holanda e em Portugal para estabelecer contatos, antes de ser preso, em 2019. A ideia de se livrar do pedágio da ‘Ndrangheta incluía fugir do porto de Gioia Tauro, o maior terminal de contêineres do Mediterrâneo, na Calábria. Com a prisão de André, Fuminho assumiu a tarefa de construir a rota para pôr a droga na Europa ( ¤ 35 mil o quilo) e, ao mesmo tempo, abrir outra, para a Ásia, um mercado em que o quilo da cocaína vale até US$ 100 mil.

É essa a tarefa que André do Rap deve retomar agora para a facção. Ele dizia aos colegas de cela– informação revelada pela TV Bandeirantes – que não ficaria preso até o Natal. Tinha razão. Ao deixar a P2 foi recebido por seu advogado e, de lá, foi de carro até Maringá (PR), onde um avião o aguardava. Em um primeiro momento, os investigadores acreditaram que o bandido foi para o Paraguai, mas quem conhece de perto o xadrez da fronteira garante que André do Rap não vai se expor ao risco de permanecer no país vizinho – em um ano, três grandes traficantes do PCC foram presos no Paraguai. Os investigadores apostam que André deve se esconder na Bolívia, onde a instabilidade política favoreceria seus negócios. O barão da droga está tateando o terreno. E é atrás de um descuido dele que a polícia aposta suas fichas para tentar mandá-lo para a cadeia.

Na rede social

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publicações tem o Twitter de André do Rap. Ele tem 110 seguidores e ali há uma foto do cantor com seus parceiros musicais.