Valor econômico, v. 21, n. 5186, 10/02/2021. Internacional, p. A11

 

Coronavírus deve ter surgido de animal, não em laboratório, diz OMS

Jeremy Page

Chao Deng

Drew Hinshaw

10/02/2021

 

 

Missão da OMS em Wuhan, na China, investigou prováveis origens do vírus que causa a covid-19. Pesquisa pode levar muitos anos ainda e está sujeita a intensa pressão política

O vírus causador da covid-19, provavelmente, transitou de uma espécie para outra antes de se infiltrar na população humana. É altamente improvável, também, que ele tenha escapado de um laboratório, disse o chefe da equipe de investigação da Organização Mundial de Saúde (OMS) em coletiva à imprensa concedida em Wuhan.

Ao esquematizar as possíveis origens da pandemia, a equipe da OMS disse ontem que é possível também que o vírus possa ter sido transmitido a seres humanos por meio de alimentos congelados importados, teoria insistentemente defendida por Pequim. Mas a equipe disse que o cenário mais provável é o vírus ter migrado naturalmente de um animal para os seres humanos; por exemplo, de um morcego para um mamífero pequeno, que infectou uma pessoa.

“Será que mudamos drasticamente o quadro que tínhamos antes? Acho que não”, disse Peter Ben Embarek, especialista dinamarquês em segurança de alimentos que falou em nome da delegação da OMS. “Será que melhoramos nossa compreensão [dos fatos]? Será que acrescentamos detalhes a esse quadro? Com certeza.”

A avaliação preliminar ocorreu durante uma entrevista coletiva concedida no fim de uma missão de quatro semanas, que incluiu duas semanas de quarentena, a Wuhan, o centro original da pandemia. A missão acontece mais de um ano após o vírus ter começado a se propagar na China e em todo o mundo, causando a morte mais de 2 milhões de pessoas.

Após analisar amostras ambientais do Mercado de Huanan, em Wuhan, bem como milhares de amostras biológicas e arquivos de casos de mais de 200 hospitais locais, 17 especialistas chineses e 17 especialistas da OMS disseram que o mercado foi um dos lugares nos quais o vírus começou a se disseminar rapidamente, mas alertaram para o fato de que seria impossível dizer como o vírus chegou lá.

Vários surtos de menor porte acompanhados por infecções iniciais de grupos no mercado teriam aderido a “um quadro clássico de um surto emergente”, disse o Ben Embarek. No entanto, ele não descartou a possibilidade de que o primeiro surto possa ter ocorrido fora de Wuhan, inclusive em outra província chinesa ou mesmo em outro país, sem ser detectado.

“O mercado provavelmente foi um ambiente em que esse tipo de propagação pode ter ocorrido facilmente, mas essa não é toda a história”, disse Embarek.

Outro membro da equipe da OMS, Peter Daszak, foi além, ao dizer à imprensa, após a entrevista coletiva, que o foco da investigação estaria se deslocando para países - principalmente do Sudeste Asiático - que poderiam ter sido a origem dos animais ou dos produtos animais vendidos no mercado de Wuhan.

“Trabalhamos bastante na China e, se você mapear isso retroativamente, [os indícios] começam a apontar na direção da fronteira, e sabemos que há muito pouca vigilância do outro lado em toda a região do Sudeste Asiático”, disse ele. “Acho que nosso foco tem de se deslocar para as cadeias de suprimentos que abastecem o mercado, para as cadeias de suprimentos de fora da China, até.”

As descobertas preliminares não deverão acalmar a discussão política em torno da investigação sobre as origens da pandemia. Tanto Pequim quanto Washington jogaram a culpa um no outro ao longo de boa parte de 2020 pela propagação inicial do vírus, e a missão da OMS demorou e foi organizada apenas após longas negociações com o governo chinês.

Muitos virologistas de fora da China acreditam que o primeiro surto começou no âmbito das fronteiras chinesas e duvidam da ideia de que alimentos congelados importados tenham dado início à pandemia mundial.

A OMC corre o risco de validar as acusações do governo chinês que muitos cientistas consideram uma teoria pouco convincente, disse o professor Lawrence Gostin, de direito de saúde mundial da Universidade Georgetown.

“A esta altura eu não daria crédito à narrativa da China sobre o que ela quer projetar para o mundo. A OMS já trilhou esse caminho antes e não deve entrar nele de novo”, disse Gostin. “É preciso salientar que isso (a missão) foi feito mais de um ano depois... É como ir à cena de um crime um ano depois, quando tudo já foi limpo. É algo muito difícil de solucionar.”

Anteriormente, os pesquisadores da OMS, entre eles Ben Embarek, tinham considerado muito baixa a probabilidade de transmissão para humanos via alimentos congelados. Apenas um punhado de possíveis incidentes de transmissão foram documentados durante o ano passado.

“Isso parece ser extremamente raro, e que isso seja a fonte da infecção parece ser extremamente raro, e isso acontece em um mundo onde hoje há meio milhão de casos todos os dias”, disse Embarek em uma entrevista em 31 de janeiro. “Transpor isso para o ano passado em Wuhan, quando o vírus não circulava de forma ampla no mundo, e achar que poderia ser a introdução da pandemia não é o cenário mais provável.”

Alguns cientistas disseram entender porque a OMS ainda leva em conta o cenário de transmissão via alimentos congelados, apesar de considerá-lo improvável. “Acho que uma coisa que realmente fica perdida em tudo isso é que toda essa investigação não pode ser separada de considerações políticas”, disse Angela Rasmussen, virologista do Centro de Saúde e Segurança Mundial da Universidade de Georgetown.

O tipo de investigação necessária para compreender totalmente a origem do Sars-CoV-2 “pode levar décadas”, disse Rasmussen. “Esta viagem serve para lançar as bases para estudos de longo prazo que são necessários para examinar as origens. É como o discurso de abertura no início de uma conferência, com a ressalva de que a conferência pode durar 20 anos.”

Stanley Perlman, professor de microbiologia, imunologia e pediatria da Universidade de Iowa, estuda os coronavírus há décadas. “É difícil saber como obter os dados para resolver essa questão”, disse ele, a respeito do rastreamento do Sars-CoV-2 até suas origens.

Com base na pesquisa sobre outros coronavírus, Perlman afirmou que o cenário mais provável é que o Sars-CoV-2 tenha se originado como um vírus de morcegos e evoluído para contagiar pessoas. “Para mim, o problema é que o vírus infecta as pessoas tão bem que ele precisava ter evoluído de alguma forma antes mesmo de chegar ao mercado de frutos do mar de Wuhan”, disse.

Perlman disse que os cientistas trabalham com várias linhas de investigação para determinar como o vírus se espalhou pela população em geral. Eles buscam identificar os vírus de morcegos que poderiam ser os ancestrais diretos do Sars-CoV-2.

Os pesquisadores da OMS tinham dito que estariam abertos à ideia de investigar a probabilidade de um incidente de laboratório. Em seus últimos dias, o governo Trump afirmou ter provas, sem torná-las públicas, de que a equipe de um dos principais laboratórios da cidade adoecera com sintomas semelhantes aos da covid-19 no outono de 2019.

Mas ontem os integrantes da missão da OMS disseram que se sentiram tranquilos ao serem informados sobre os fortes protocolos de biossegurança adotados nos principais laboratórios da cidade, entre eles o Instituto de Virologia de Wuhan. Embarek acrescentou que o laboratório também não trabalhava com nenhum vírus ligado estreitamente ao que causa a covid-19.

“É muito improvável que algo possa escapar de um lugar como este”, disse ele ontem. “Claro que não é impossível. Pode acontecer uma vez ou outra... Mas são eventos extremamente raros.”