O Estado de São Paulo, n.46379, 10/10/2020. Internacional, p.A18

 

Agência da ONU ganha Nobel da Paz por inibir guerras ligadas à fome na pandemia

Paulo Beraldo

10/10/2020

 

 

Honraria. Prêmio de 2020 vai para Programa Mundial de Alimentos, maior organização humanitária do mundo, com atuação em 88 países; para especialistas, escolha mostra ação efetiva das Nações Unidas, que sofre com ataques de líderes populistas e nacionalistas

O prêmio Nobel da Paz de 2020 foi concedido ontem para o Programa Mundial de Alimentação (PMA), braço humanitário da ONU contra a fome. Analistas e membros da organização ouvidos pelo Estadão afirmaram que o reconhecimento dá mais visibilidade ao tema e deve trazer mais recursos para o combate à insegurança alimentar no mundo.

“O prêmio pode trazer mais recursos contra a fome”, afirma Daniel Balaban, chefe da agência no Brasil, para quem o Nobel coloca luz em um problema tão importante que afeta o mundo. “Quem realmente ganhou foram as populações marginalizadas e esquecidas.”

Nãoéa primeira vez que uma organização internacional ganha o Nobel da Paz. Entre 2000 e 2020, foram sete. Entre 1901 e 1999, foram 18. Em 2013, a agência da ONU contra a proliferação de armas químicas recebeu o prêmio. Em 1981, foi a vez do Altocomissariado para Refugiados.

O Nobel da Paz foi anunciado poucas semanas após a Assembleia-geral das Nações Unidas, onde há 59 anos o PMA foi criado, em um momento em que a ONU é atacada por líderes nacionalistas e populistas.

Na avaliação do diplomata Rubens Ricupero, a escolha de uma agência da ONU é simbólica por dar visibilidade a um programa concreto, que deixa clara uma das utilidades das Nações Unidas. “Escolheram um problema real, que ameaça milhões de pessoas, e mostram que, se não fosse a ONU, o número de pessoas morrendo seria muito maior”, explica. “Se não houvesse a ONU, que país se mobilizaria e gastaria bilhões com ajuda humanitária para acabar com a fome?” Para Ricupero, a escolha de entidades tende a ser uma forma de procurar consensos em um ambiente polarizado. “É mais neutro.”

A avaliação é a mesma de Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da FGV-SP, para quem o grupo do Nobel decidiu escolher uma instituição acima de controvérsias. Para ele, no entanto, há motivos mais importantes. “A mensagem que quiseram passar é a de que não podemos depender de indivíduos, e sim de enfatizar a importância de instituições, normas e regras. É de que não podemos aguardar um salvador que vai fazer toda a diferença sozinho, e de que instituições têm um impacto maior.”

Ricupero e Stuenkel concordam que escolher uma agência como a Organização Mundial da

Saúde (OMS) no momento seria controvertido. A atuação do PMA vai desde a distribuição direta de alimentos em regiões de conflitos até o auxílio para que governos desenvolvam políticas públicas de redução da fome.

“Onde há conflito, há fome. E onde há fome, frequentemente, há conflito. Hoje, é um lembrete de que segurança alimentar, paz e estabilidade caminham juntas. Sem paz, não podemos alcançar nosso objetivo global de fome zero. E, enquanto houver fome, nunca teremos um mundo pacífico”, escreveu David Beasley, diretor-geral da entidade.

“Essa premiação sublinha o papel da ONU e a urgência de se lidar com a questão da segurança alimentar no contexto da pandemia, que não afeta apenas os países mais pobres, mas também populações vulneráveis em países de renda média e nos países mais ricos”, afirma Adriana Abdenur, pesquisadora de relações internacionais e diretora da Plataforma Cipó.

A fome teve um aumento de 80% durante a pandemia. Estimativas da ONU indicam que 690 milhões de pessoas no planeta vivem em situação de insegurança alimentar e ao menos 20 mil morrem por dia em decorrência da falta de alimentos, até mesmo no Brasil. Embora seja um país exportador, cerca de 10,3 milhões de brasileiros enfrentam dificuldades para obter alimentos diariamente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – o equivalente à população de Portugal.

“A pandemia não pode se converter em uma pandemia de fome. Estamos preocupados com o aumento da insegurança alimentar severa”, disse Miguel Barreto, diretor do PMA na América Latina. Um relatório elaborado da ONU publicado em julho revelou que 47,7 milhões de latino-americanos não tiveram comida suficiente em 2019. “A paz não é somente um mundo livre de conflitos, é um mundo livre de fome e de desnutrição”, afirmou Barreto.

Perspectiva

“Segurança alimentar, paz e estabilidade caminham juntas”

David Beasley

DIRETOR-GERAL DO PROGRAMA MUNDIAL DE ALIMENTAÇÃO

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