Correio braziliense, n. 21055, 16/01/2021. Colunas, p. 3

 

Nas entrelinhas: Réquiem para Manaus

Carlos Alexandre de Souza 

16/01/2021

 

 

De proporções dantescas, a pandemia no Brasil tornou-se assunto mundial. A tragédia de Manaus levou a Organização Mundial da Saúde a avaliar o momento crítico que o país atravessa. "O que está acontecendo em Manaus é um alerta para muitos países. Não deixem que uma falsa sensação de segurança baixe a guarda de vocês. Se vocês construíram uma infraestrutura, com leitos de UTI, oxigênio, não desativem isso, porque a pandemia não acabou ainda", comentou a diretora-geral assistente da OMS, Mariangela Simão. O diretor-executivo, Mike Ryan, deu um diagnóstico abrangente sobre os equívocos em série que vêm sendo cometidos no Brasil nos últimos 10 meses. "O aumento dos encontros entre as pessoas, a redução do distanciamento social, a fadiga, a exaustão estão levando a isso. A situação é difícil, e não são as novas variantes que estão levando a isso. Elas podem ter um impacto, mas é muito fácil jogar a culpa na variante, dizer que foi o vírus que fez isso. Infelizmente, é, também, o que nós não fizemos que causou isso. Nós precisamos ser capazes de aceitar, como indivíduos, como comunidades e governos, nossa parte da responsabilidade para o vírus sair do controle", avaliou o representante da ONU.

Manaus enfrenta, neste momento, uma situação assustadoramente mais difícil do que no primeiro semestre. Ainda que a variante do vírus seja apontada como um fator do agravamento, é impossível negar que a capital e o estado amazonense sofrem de um mal que acomete muitas regiões do Brasil, há vários meses: o descaso com a doença que já matou 208 mil pessoas. A cada dia, a cada morte, a cada internação, a covid-19 cobra da sociedade e dos governantes brasileiros o preço da irresponsabilidade. Durante meses, autoridades-chave no enfrentamento desta calamidade têm insistido com desdém, ironia, desinformação, tergiversação e outras atitudes condenáveis para sabotar o combate unificado contra o novo coronavírus. Há meses gestores públicos examinam, diariamente o avanço de casos e de mortes no Brasil e a pressão sobre o sistema de saúde. Ainda assim, hesitam em adotar medidas restritivas mais duras para impedir a disseminação do vírus. Há meses especialistas alertavam para o risco das festas de ano; recomendavam para que se evitassem as festas de Natal e de Réveillon, sob o risco de provocar uma implosão do sistema de saúde. E o que se viu? Centenas, milhares de pessoas reunidas em espaços fechados ou abertos, em busca de algumas horas de alívio para esquecer as supostas dificuldades de 2020. A conta chegou, como previsto, duas semanas após o esbaldar de fim de ano. O terror da pandemia começou 2021 de maneira muito mais intensa.

Diga-se mais uma vez: o Brasil não tem, até o momento, uma perspectiva de mudar o quadro trágico a médio prazo. Em termos nacionais, existe apenas a possibilidade de o governo federal utilizar um naco de doses — não mais do que 6 milhões — do imunizante produzido pelo Butantan. Sim, do Butantan, o instituto que, há poucos dias, foi motivo de chacota de bolsonaristas por apresentar uma vacina de 50,38% de eficácia contra o coronavírus. Sim, a vacina virá de São Paulo, o estado cujo governador foi chamado, ontem, de "moleque". A politização da pandemia se torna um espetáculo deprimente à medida que o vírus se alastra impiedosamente pelo Brasil. O vírus despreza as autoridades que apresentam justificativas patéticas e evasivas para o fracasso. O vírus ganha agilidade e resistência toda vez que um prefeito ou um governador flexibiliza as medidas preventivas, com receio de incomodar setores. O vírus se torna mais letal a cada post dos partidários da ideologia cretina e assassina que grassa nas redes sociais. Manaus não é um o caso isolado; é um sinal de que o Brasil pode mergulhar, em questão de semanas, em uma espiral de terror jamais vista.