Correio braziliense, n. 21050, 11/01/2021. Brasil, p. 5

 

Limitações do governo na compra da vacina

Bruna Lima 

11/01/2021

 

 

Inicialmente rejeitada pelo presidente Jair Bolsonaro por ser considerada a "vacina do Doria", a CoronaVac, agora, é oficialmente do Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo sem dinheiro para comprar todas as doses produzidas pelo Instituto Butantan, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, o Ministério da Saúde fechou acordo de oferta exclusiva para o Programa Nacional de Imunização (PNI), arriscando arrastar por 12 meses as aquisições que poderiam ser feitas ainda no primeiro semestre de 2021. A pasta, contudo, não fez o mesmo com outras candidatas, dando aval, inclusive, para que as clínicas privadas prossigam com negociações e incorporem os imunizantes contra a covid-19 para quem puder pagar. A conduta contraditória, na visão de especialistas, revela um jogo político por reafirmação do protagonismo do governo federal, ainda que, para isso, seja necessário frear produção.

O Instituto Butantan previa entregar 100 milhões de doses da vacina chinesa até julho deste ano, mas o secretário-executivo da pasta da Saúde, coronel Élcio Franco, revelou na última coletiva que "não temos orçamento, neste momento, para fazer a contratação integral das 100 milhões de doses. Então, estamos comprando um primeiro lote com a opção de nos manifestarmos para fazer um novo contrato". O Butantan já entrou com pedido emergencial da vacina, mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) solicitou mais dados. Ontem, o secretário de Saúde de SP, Jean Gorinchteyn, afirmou que a análise do pedido começará a ser feita nas primeiras horas de hoje e que não haverá atrasos no início da imunização.

As apostas na CoronaVac são tão sólidas que o Butantan garantiu ter opção de ampliar a oferta em 2021 e está construindo uma fábrica que deve estar pronta no segundo semestre, com capacidade para entregar 100 milhões de unidades anuais. Cabe ao governo solicitar.

A garantia de exclusividade é estratégica, se não estivesse enviesada por uma disputa política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria. "O governo federal deveria estar coordenando o processo desde o início. O que se faz agora é correr atrás de prejuízos", destaca o médico e doutor em saúde pública Flávio Goulart. No entanto, para ele, é necessário que o orçamento seja remanejado para a compra imediata e diversificada das vacinas, e que as produções não fiquem à mercê da canetada do governo.

Na contramão, o que o Planalto autoriza é a entrada à rede suplementar na mesa de negociações. O presidente Bolsonaro afirmou, na tradicional live da semana, que "não criará problemas" em relação às clínicas privadas que desejarem comprar imunizantes contra a covid-19. "Se uma empresa quiser comprar lá fora a vacina e vender aqui, quem tiver recursos vai tomar vacina lá. Agora, nós vamos oferecer de forma universal, e da nossa parte será não obrigatória", apontou.

Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador da Anvisa, mais uma vez, o chefe do Executivo transfere a responsabilidade, como tem feito desde o início das tratativas da vacina. "O governo federal chegou atrasado. Nós temos essas duas vacinas, a de Oxford e a CoronaVac, por causa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e do Instituto Butantan. O Ministério da Saúde não moveu uma palha. Chega a ser criminosa a forma com que a pasta e o governo federal trataram a fundamental questão da vacinação", diz.

Rede privada

Com aval do presidente, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) pretende adquirir cinco milhões de doses da vacina Covaxin, da empresa indiana Bharat Biotec. "Estamos muito felizes em ter a chance real de contribuir com o governo na cobertura vacinal, utilizando da saúde suplementar para desafogar os gastos públicos", afirma o presidente da ABCVAC, Geraldo Barbosa. A possibilidade, no entanto, é motivo de questionamento por parte de especialistas, que não concordam com a separação da oferta de vacina entre público e privado em um primeiro momento de escassez de oferta.

"Toda vacina que entrar no território nacional deve servir a uma estratégia nacional para reduzir número de mortes. Isto se chama interesse público. (...). É antiético, indecente, que trabalhadores de serviços essenciais, inclusive da saúde, continuem tendo suas vidas ceifadas por uma doença para a qual já existe vacina, enquanto o setor privado obtém lucro vacinando pessoas que possuem condições materiais de sobra para proteger-se", opinou, pelas redes sociais, a especialista em Globalização da Saúde e professora da Universidade de São Paulo (USP) Deisy Ventura.

Uma carta aberta divulgada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e assinada por mais 28 entidades da área, frisa a necessidade de se seguirem os critérios epidemiológicos e de vulnerabilidade social na campanha de imunização. "Numa sociedade como a nossa, marcada por grotescas desigualdades sociais, é moralmente inaceitável que a capacidade de pagar seja critério para acesso preferencial à vacinação contra a covid-19. Caso isso ocorra, uma fila com base em riscos de se infectar, adoecer e morrer será desmontada. É inadmissível, portanto, permitir que pessoas com dinheiro pulem a fila de vacinação por meio da compra de vacinas em clínicas privadas".

O Ministério da Saúde esclarece que, na eventualidade da integração de clínicas particulares de vacinação ao Plano Nacional, é necessário que os grupos prioritários sejam, "a princípio, obedecidos, mesmo que haja integração de clínicas particulares ao processo de imunização". O imunizante também precisará estar registrado e as aplicações feitas junto à Rede Nacional de Dados de Saúde e à caderneta digital de vacinação.