Correio braziliense, n. 21048, 09/01/2021. Curso, p. 10

 

Conexão diplomática

Silvio Queiroz 

09/01/2021

 

 

Radares atentos a sinais de Brasília

Não se compara à perplexidade que correu mundo diante das cenas do Capitólio invadido por uma turba incitada pelo próprio presidente Donald Trump, inconformado com a derrota nas urnas para o democrata Joe Biden. Mas soa um tanto intrigante — para alguns, até preocupante — o silêncio oficial do governo brasileiro sobre os incidentes em Washington. Mais ainda, o teor dos pronunciamentos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo chanceler Ernesto Araújo realimentou, entre observadores do cenário nacional e global, a impressão de que falta ao Planalto e ao Itamaraty uma visão de alcance mais longo sobre as relações com os EUA após a troca de comando na Casa Branca.

A 10 dias da data prevista para a transição — que a oposição democrata procura antecipar, invocando a conduta imprevisível do titular em despedida —, emissários e parceiros externos não menosprezam o risco de o Brasil se ver algo “de lado” nos planos do novo governo norte-americano. Com o agravante de que o alinhamento incondicional com Trump foi o acorde dominante na política externa adotada por Bolsonaro e Araújo nessa metade inicial de mandato.

Nos últimos dois anos, Brasília tocou em uníssono com Washington em foros multilaterais, como a ONU e a OMS, na política regional para a América do Sul — leia-se Venezuela — e, notadamente, no combate mundial à pandemia. Além de não ter colhido benefícios bilaterais, como ficou evidente na esfera do comércio, o país se viu muitas vezes na contramão de parceiros de importância crucial, como a União Europeia. O risco, alertam os amigos preocupados, é que o Brasil se veja agora falando praticamente sozinho.

“Efeito Orloff”

Um diplomata veterano, com bagagem acumulada em mais de uma passagem por aqui, invocou um antigo comercial de tevê para comentar a reação do presidente e do chanceler ao assalto inusitado sobre o Congresso americano, sob a batuta de um presidente que, às vésperas de passar o cargo, não tinha cumprimentado (até a tarde de ontem) o adversário vitorioso e sucessor eleito. Não passou em branco o fato de que, ao contrário do habitual nesse tipo de situação, não houve manifestação por nota oficial do governo.

 Araújo, em postagem nas redes sociais, mencionou “grande parte do povo americano (que) se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. Bolsonaro falou sobre o tema em uma das costumeiras interações com apoiadores que o esperam na entrada do Alvorada. Além de dar aval próprio às denúncias vagas de fraude repetidas por Trump desde a derrota para Biden, voltou à carga contra as urnas eletrônicas brasileiras e acenou com “problema pior que os EUA”, em 22.

Na peça publicitária citada pelo diplomata, o personagem no balcão de um bar ouve o conselho de outro, castigado pela ressaca, para que prefira uma marca determinada. “Eu sou você amanhã”, diz a frase de advertência, que se tornou slogan para além da propaganda e assumiu ares de conceito político.

Vai pra Cuba?

Será talvez na interação com a vizinhança latino-americana que a diplomacia brasileira terá o primeiro teste para as afinidades entre os governos Biden e Bolsonaro. A equipe anunciada pelo novo titular da Casa Branca para a área externa indica uma inclinação pronunciada para retomar as linhas gerais da política seguida na última administração democrata, sob Barack Obama. O agora presidente eleito, senador veterano que presidiu o Comitê de Relações Exteriores, era o vice do jovem Obama, que o tinha como conselheiro principal para a ação diplomática.

O contraste mais evidente com a “Trumplomacia” tem sido na direção de privilegiar a construção de uma hegemonia global assentada no sistema multilateral. No Hemisfério Ocidental — denominação oficial do Departamento de Estado para os assuntos interamericanos —, porém, Biden sinaliza para a reaproximação gradual e cuidadosa com Cuba. Obama reatou relações, em 2016, após meio século de Guerra Fria. O sucessor deu marcha à ré no processo e praticamente esvaziou a embaixada em Havana, mas não chegou a romper novamente os laços formais.

No Brasil de Bolsonaro, Cuba é o destino sugerido aos descontentes. 

Congresso na mira

Pode parecer curioso, mas quem acompanha com interesse diplomático o processo político no Brasil chama a atenção para um aspecto que seria naturalmente lateral nas articulações para a recomposição das mesas diretoras do Senado e da Câmara. A movimentação dos partidos entre os blocos que apoiam os diferentes candidatos à presidência de cada uma das casas do Congresso determinará, igualmente, quem terá o comando das respectivas comissões de Relações Exteriores.

 A possibilidade de negociar a indicação eventual desse posto na Câmara esteve entre os argumentos dos que defenderam, na bancada do PT, a adesão ao bloco do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ. Bolsonaro, que apoia o rival Arthur Lira (PP-AL), estaria costurando em paralelo uma ponte com o candidato de Maia, Baleia Rossi (MDB-SP). O arranjo, segundo transpirou, poderia incluir a nomeação do ex-presidente Michel Temer, padrinho político do deputado, para assumir o Itamaraty no lugar de Ernesto Araújo, diplomata de carreira identificado com a dita “ala olavista” do governo.