O globo, n. 31930, 07/01/2021. Sociedade, p. 8

 

Vacinas insuficientes

Ana Lucia Azevedo

07/01/2021

 

 

'Apostas' para acelerar a imunização exigem cautela, dizem especialistas

Questão global. Trabalhador de casa de saúde recebe vacina Covid-19 na Holanda: mais de 15 milhões de doses já foram administradas em todo o mundo
A falta de vacinas suficientes contra a pandemia Covid-19 pode levar a medidas que os especialistas classificam como apostas potencialmente perigosas e ainda sem base científica sólida. A possibilidade discutida em alguns países, incluindo o Brasil, de estender o intervalo entre as doses das vacinas, aplicando uma dose única ou duas meias doses, é controversa.

O Reino Unido, com a disseminação de uma nova cepa do coronavírus na maioria das teses contagiosas, deu um passo adiante. As autoridades do Reino Unido estão considerando permitir que a mesma pessoa tome diferentes doses de imunizadores se o usado na primeira dose não estiver disponível.

Mas nada disso foi investigado nos ensaios clínicos que levaram à aprovação em tempo recorde de vacinas pandêmicas já disponíveis no mundo, alertam os cientistas. "O Reino Unido pode se tornar um grande laboratório de um perigoso experimento em massa", alertou o site da American Medical Stat.

O imunologista Orlando Ferreira, um dos coordenadores do Laboratório de Virologia Molecular (LVM) da UFRJ, diz que faltam não só vacinas, mas planejamento estratégico. Diante de uma demanda literalmente do tamanho do mundo e da escassez de vacinas, Ferreira considera inevitável que tais medidas venham a ser tomadas. Ele lembra que os dados disponíveis são poucos e referem-se à chamada dose plena:

- Decidir mudar a estratégia é uma aposta arriscada. A vacinação é um processo muito complexo, todas essas vacinas são novas, não dá para arriscar. Mas com a corrida desenfreada por vacinas, podemos ver medidas impulsionadas pelo desespero ou mera política.

Ferreira lembra que não se sabe ao certo por quanto tempo dura a proteção oferecida pelas vacinas. Na verdade, a duração da imunidade adquirida com a infecção natural nem é conhecida. Ele diz que há alguns dados que sugerem que é possível adiar a segunda dose ou dar apenas uma, mas tudo muito preliminar.

- Essas vacinas são fruto de um esforço fantástico, trazem novas tecnologias. A vacinação, quando em massa, vai combater a pandemia. Mas você precisa fazer tudo com cautela.

O virologista Paul Bieniasz, da Rockefeller University, nos Estados Unidos, levanta outra possibilidade. Ele alerta que dar proteção incompleta a milhões de pessoas, além de não protegê-las, pode levar ao aparecimento de cepas do coronavírus resistente à vacina.

A falta de vacinas suficientes já levou a mudanças na dosagem contra outras doenças. É o caso da modificação do imunizante contra a febre amarela. Duas doses foram recomendadas, mas com a falta de vacinas para fazer frente à epidemia de febre amarela selvagem no Brasil em 2017, o governo mudou para uma dose e depois para meia dose, que seriam repetidas em um intervalo menor.

Porém, a vacina contra a febre amarela, desenvolvida na década de 30 do século XX, é uma vacina antiga conhecida pela ciência. Mesmo assim, diz Ferreira, a decisão ainda suscita discussão. As vacinas contra a pandemia são principalmente novas tecnologias e lutam contra um novo vírus.

Ao contrário do imunizante contra a febre amarela, que foi testado por muitos anos e reavaliado, todas as vacinas covid-19 foram desenvolvidas em menos de um ano, testadas em seis meses e aprovadas em semanas. Prazos extraordinários para lidar com a urgência da pandemia.

Outra possibilidade, a combinação de doses de diferentes imunizantes é vista com ainda mais ressalvas. Ferreira diz que ainda pode ser plausível, em caso de extrema necessidade, considerar a utilização de doses de fabricantes diferentes, mas com a mesma tecnologia.

MISTURA PERIGOSA

Caso, por exemplo, das vacinas AstraZeneca / Oxford, Jansen e Gamaleya, todas com adenovírus como portador da proteína S. SarsCoV-2 ou Pfizer / BioNTech e vacinas modernas, ambas de mRNA.

- Mas misturar plataformas seria muito perigoso. Não há dados de teste que forneçam uma base para isso - diz ele.

A imunologista Ester Sabino, professora da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora da equipe que primeiro sequenciou o genoma do coronavírus no Brasil, lembra que é possível pensar em combinar imunizantes, mas que isso precisa ser testado antes do uso em massa.

- Um estudo poderia ser iniciado agora para ver se há proteção, se a segurança permanece. Não é difícil testar, mas você precisa fazer isso, diz.

Para a microbióloga Natalia Pasternak, presidente da questão Institute of Science e colunista do globo, "as apostas são necessárias nas emergências".

- Não tem como você não conseguir. Tínhamos um plano, mas talvez eles tenham que ser alterados no meio do caminho. A ciência vai sustentar nossa conduta, mas o gerente precisa agir e fazer intervenções. Será baseado na ciência, mas muitas vezes terá que fazer apostas levando em consideração probabilidades, não certezas.