O Estado de São Paulo, n.46372, 03/10/2020. Economia e Negócios, p.B1

 

Marinho aconselha relator a furar o teto por Renda Cidadã; Guedes reage: 'Desleal'

Idiana Tomazelli

Adriana Fernandes

Eduardo Rodrigues

Thais Barcellos

03/10/2020

 

 

Disputa na Esplanada. Ministro da Economia acusa colega de 'despreparado' e 'fura-teto' após Marinho defender que novo programa social não seja atingido pela medida de contenção de gastos; chefe da equipe econômica também disse que eleição pesa na discussão

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, aconselhou o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da proposta que criará o Renda Cidadã, a tirar o novo programa social do alcance do teto de gastos, que limita o avanço das despesas à inflação. A informação foi apurada pelo 'Estadão/broadcast' com duas fontes do governo e contraria a posição da equipe econômica.

O racha ficou escancarado ontem, quando Marinho disse em reunião com analistas do mercado que o Renda será criado da melhor ou da pior maneira e criticou o ministro da Economia, Paulo Guedes, que revidou chamando o colega de "despreparado, desleal e fura-teto".

Tirar o Renda do teto "resolveria" o problema da falta de dinheiro no Orçamento para ampliar o alcance atual do Bolsa Família, que seria substituído pelo novo programa. A alternativa defendida pela equipe econômica de revisar outros benefícios já foi criticada pelo presidente Jair Bolsonaro.

A medida, segundo apurou o Estadão/broadcast, viria acompanhada da criação de uma fonte de receitas para o programa, como redução de subsídios ou taxação de dividendos, uma forma de reduzir resistências e tentar sinalizar para o mercado financeiro a manutenção do compromisso com as contas públicas. Dessa forma, embora fora do teto, o programa não aprofundaria o rombo nas contas públicas, na avaliação dos defensores dessa alternativa.

No Congresso, há quem defenda que a exceção ao teto seja temporária (por um ano, por exemplo). Na equipe de Marinho, porém, o desejo é que a solução seja permanente. Como o Bolsa Família hoje está dentro do limite de despesas, sua substituição por um programa fora do teto liberaria um espaço de R$ 35 bilhões para novos investimentos (bandeira defendida por Marinho e por parlamentares) apenas no Orçamento de 2021. Também haveria espaço extra em 2022, ano de eleições presidenciais.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), tem se posicionado contra a ideia de tirar o Renda do alcance do teto de gastos, mas outras lideranças tem advogado por um "respiro" diante da forte restrição fiscal imposta pelo teto.

Marinho deu pistas de seu posicionamento em uma conversa com integrantes da Ativa Investimentos. Segundo apurou o Estadão/broadcast, o ministro do Desenvolvimento Regional admitiu a pressão para flexibilizar o teto e criticou Guedes, dizendo que a equipe econômica está "desgovernada". O ministro da Economia contra-atacou num primeiro momento. Em uma segunda coletiva à imprensa, ele reconheceu a eleição municipal como um fator de peso na discussão.

Eleições. "Uma coisa é você furar o teto porque você está salvando vidas em ano de pandemia, e isso ninguém pode ter dúvidas. Se a pandemia recrudescer e voltar em uma segunda onda, aí sim nós decisivamente vamos fazer algo a respeito. E, aí sim, é o caso de você furar o teto", declarou Guedes.

"Agora, você furar teto para fazer política, para ganhar eleição, para garantir, isso é irresponsável com as futuras gerações. Isso é mergulhar o Brasil no passado triste de inflação alta", prosseguiu Guedes. O ministro ainda pediu à classe política que "enfrente o desafio" das reformas e da agenda de ajustes.

Como antecipou o Estadão, Bittar começou a conversar com outras lideranças após o desentendimento com Guedes. Técnicos da área econômica, inclusive, avaliam que Bittar, outrora muito afinado com a equipe do ministro da Economia, teria mudado da "água para o vinho". A nova articulação tem envolvido inclusive a assessoria especial e parlamentar do MDR.

Procurado pela reportagem, Bittar e sua assessoria não responderam. O MDR não respondeu sobre as conversas entre Marinho e o senador. Em nota, Marinho disse que as informações sobre a reunião com analistas de mercado chegaram à imprensa "de maneira distorcida". Segundo ele, a reunião teve o intuito de reforçar o compromisso do governo com a austeridade nos gastos e a política fiscal.

Na equipe econômica, a avaliação é de que qualquer proposta para criar o Renda Cidadã fora do teto de gastos vai impulsionar ainda mais a escalada de desconfiança dos investidores já vista nos últimos dias. O reflexo disso seria uma disparada nas taxas de juros cobradas do Tesouro para se financiar no mercado, pressionando a dívida, que está perto de 100% do PIB e com prazo mais curto.