O Estado de São Paulo, n.46372, 03/10/2020. Notas e Informações, p.A3

 

Descolamento da realidade

03/10/2020

 

 

Na esfera ambiental, é difícil saber qual é a batalha mais feroz: se contra as motosserras e as chamas ou se contra a mentira e a demagogia. O fato é que o Brasil está perdendo feio em ambas.

Em dois discursos na ONU, por ocasião da Assembleia-geral e da Cúpula de Biodiversidade, o presidente Jair Bolsonaro aludiu a algumas verdades. O Brasil é um exemplo de preservação, com cerca de 2/3 do território coberto por vegetação nativa. Sua legislação, a começar pelo Código Florestal, é das mais avançadas, determinando, entre outras coisas, que os proprietários na Amazônia são obrigados a preservar por conta própria 80% de suas terras.

Em poucas décadas, o País se tornou em certos aspectos a maior potência agropecuária do mundo. Em que pesem as exceções, a produtividade cresceu – em razão de técnicas de produção intensiva desenvolvidas por órgãos de ponta como a Embrapa – em proporções muito maiores do que a área cultivada, e a escala desta produção tem pouco a ver com a Amazônia. Finalmente, sim, na cena internacional, há muitos demagogos que buscam votos e produtores que buscam minar seus competidores no Brasil, utilizando a Amazônia como alavanca para campanhas de difamação.

O problema é que ninguém tem feito mais para abastecer estas campanhas que o próprio presidente. Sua paranoia conspiratória, seu negacionismo, sua negligência estão soterrando essas verdades, e com elas um mar de oportunidades para o País, muitas vezes sob as mentiras mais despudoradas.

Na Cúpula de Biodiversidade, o presidente afirmou que seu governo reverteu "a tendência de aumento da área desmatada observada nos anos anteriores" na Amazônia. Mentira flagrante, desautorizada por dados do próprio governo. Segundo o Inpe, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, entre agosto do ano passado e julho deste ano a devastação aumentou 40%.

Bolsonaro falou da "cobiça internacional" de organizações ligadas a ONGS que "comandam os crimes ambientais no Brasil". Quais? Como chefe de Estado, seu dever seria apontar as evidências destes crimes, apresentar um programa de combate enérgico e aproveitar o foro privilegiado da ONU para mobilizar apoio. A realidade é bem outra. As queimadas no Pantanal, por exemplo, estão batendo recordes, e o desastre só não é pior porque muitas ONGS estão se mobilizando voluntariamente, sem maior estrutura e apoio, para salvar animais e conter incêndios.

"Mantemos firme nosso empenho em buscar o desenvolvimento sustentável do País, com esteio numa agricultura baseada na biotecnologia." Mas o governo não foi capaz até agora de apresentar uma única proposta, de editar uma só medida para promover a bioeconomia.

Surpreendentemente, a pressão dos ambientalistas foi superada pela de fundos internacionais, bancos e associações agropecuárias nacionais. Os líderes europeus têm subido o tom, pondo em risco o acordo com o Mercosul. Se França e Alemanha fecharem a questão, é fim de jogo.

No primeiro debate dos candidatos à presidência norteamericana, o democrata Joe Biden citou a Amazônia e falou em levantar R$ 20 bilhões para conter o desmatamento, ao mesmo tempo que ameaçou o Brasil com sanções severas. Fosse um estadista astuto e pragmático, Bolsonaro separaria o joio do trigo, contemporizando a ameaça e aproveitando essa e outras oportunidades para canalizar recursos para o Brasil. Mas, ao contrário, ele e seu ministro do Meio Ambiente foram às redes para desmoralizar e ironizar aquele que, até onde as pesquisas apontam, deve ser o próximo presidente dos EUA.

"Somos um exemplo para o mundo", disse recentemente Bolsonaro. Somos. Deveríamos ser reconhecidos como tal. E temos muito a fazer contra os retrocessos que maculam essa condição exemplar. Bastaria, para tanto, fazer valer a lei, ela mesma exemplar. E para ajudar há autoridades e o capital internacional que, pouco importa se por escrúpulo ou alarmismo, estão dispostos a ceder recursos. Mas Bolsonaro prefere o joio, e quanto mais dá livre curso ao seu destampatório, mais o Brasil se torna um pária internacional.