O globo, n. 31925, 02/01/2021. Sociedade, p. 6

 

A ciência em 2020 foi Covid-19

Rafael Garcia

02/01/2021

 

 

Doença gerou volume muito maior de trabalhos do que Zica e Ebola em seus auges

O ano de 2020 termina com mais de 250 mil artigos científicos publicados na Covid-19, totalizando 4,4% da produção científica mundial de acordo com a base de dados Dimensions, especializada em métricas acadêmicas. A parcela da comunidade científica mobilizada para trabalhar em uma única doença não tem precedentes na história recente. O diferencial da Covid - 19, claro, é que a epidemia atingiu o mundo inteiro - incluindo os dois países que mais produzem ciência do planeta: China e Estados Unidos.

A proporção de 4,4% torna-se mais impressionante quando, segundo a mesma base de dados, se compara o trabalho da Covid-19 com os de duas grandes epidemias recentes. O surto de Ebola na África, concentrado em 2014 e 2015, e a epidemia de Zika na América Latina em 2016 e 2017 não representaram mais do que 0,2% da produção científica da época. O número extraído pelo Dimensions, um projeto que tem parceria com o Google Cloud Platform para extrair e compilar dados sobre trabalhos científicos em todo o mundo, se refere não apenas às ciências biomédicas, mas a todas as áreas, incluindo física, química ou matemática. Os estudos classificados como campos da medicina e da biologia representaram, na verdade, apenas dois terços dos artigos que mencionaram a doença. O terço restante inclui Estudos Sociais (6% do total) e áreas tão distintas como a psicologia (4.

 BRASIL SE DESTACA

O grau de mobilização que o novo coronavírus provocou na comunidade acadêmica mundial se refletiu também no Brasil. Nos últimos anos, o país tem representado cerca de 2% da produção científica mundial, mas quando um corte é feito apenas com trabalhos na Covid-19, a participação sobe para 2,8%. Fomos o décimo país que mais produziu ciência sobre o coronavírus. Os números das dimensões estão de acordo com outras bases de dados de literatura acadêmica estimadas, incluindo Scopus e Web of Science, ambas estimando a produção do Brasil na produção científica mundial da Covid-19 em 3,2%.

O aumento dessa participação pode refletir uma necessidade maior de pesquisar a Covid-19 internamente, porque o país foi um dos mais atingidos pela pandemia. A opinião é de Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo), maior agência de fomento à ciência do país.

- Eu diria que esse aumento percentual no Brasil, infelizmente, está associado à dureza da epidemia no país - diz Mello.

- A China, por exemplo, onde surgiu a Covid-19, publicou muito sobre a doença no início. No início da pandemia, respondia por 50% dos artigos publicados. Com o avanço do vírus, Estados Unidos e Europa aumentaram o número de publicações, e o Brasil acabou entrando nessa tendência.

Uma métrica importante para entender como estão interligados o impacto da Covid-19 e as pesquisas sobre a doença é o número de ensaios clínicos realizados no Brasil. O país teve 129 provas registradas e ficou em 15º lugar no mundo. Para testar medicamentos e vacinas, afinal, é preciso ter infraestrutura de pesquisa, que é razoável no Brasil, e um grande contingente de doentes, de que o país tem de sobra.

 QUEDA NA QUALIDADE

Outro padrão importante observado em 2020, acompanhando a explosão de pesquisas sobre o novo coronavírus, foi uma enxurrada de ciência questionável produzida durante a pandemia.

Por causa da pressa em publicar resultados que ajudariam os médicos na linha de frente no início da pandemia, muitas pesquisas médicas foram lançadas sem um controle de qualidade sobre os autores. É o caso dos chamados "pré-impressos", estudos que são publicados antes de passar pela chamada "revisão por pares", que avalia artigos submetidos a periódicos acadêmicos indexados. Os estudos revisados ​​em periódicos de prestígio são frequentemente a medida de status na comunidade científica, com as pré-impressões sendo limitadas a um número menor de trabalhos que exigiram exposição rápida por algum motivo. Durante a pandemia, porém, houve uma explosão no número de pré-impressões sobre a Covid-19, que responderam por 15% da ciência produzida sobre o assunto.

"Uma revisão robusta de manuscritos por pares é vital, especialmente quando o acesso aberto aos estudos os torna fáceis de encontrar e consultar", disse a especialista Katrina Bramstedt, da Agência de Integridade em Pesquisa de Luxemburgo, em um artigo para o British Journal of Medical Ethics. "A pandemia gerou uma enxurrada de manuscritos, mas o contingente de revisores de periódicos acadêmicos depende do voluntariado na comunidade acadêmica, que concorre com compromissos de pesquisadores que envolvem emprego e família ", escreve. O fato é que o cenário da publicação científica tem sofrido uma aceleração e consequente queda na qualidade, afirma a pesquisadora, será necessário criar novas estratégias para lidar com essa nova realidade.