O Estado de São Paulo, n.46364, 25/09/2020. Metrópole, p.A16

 

Sob pressão, governo federal altera portaria sobre aborto

Mateus Vargas

Rafael Moraes Moura

Thiago Faria

Daniel Weterman

25/09/2020

 

 

Ultrassonografia foi abolida, mas se manteve notificação à polícia; especialistas criticam e STF adia análise

O Ministério da Saúde alterou a portaria em que obrigou médicos e profissionais de saúde a notificarem a polícia ao atenderem vítimas de estupro que desejam realizar um aborto legal. A mudança ocorreu na véspera de o Supremo Tribunal Federal iniciar o julgamento de uma ação que contesta a norma e após críticas de especialistas e parlamentares, que ameaçavam derrubar a medida no Congresso. A análise do caso na Corte foi adiada pelo ministro Ricardo Lewandowski.

Pela nova redação, publicada na edição desta quinta-feira do Diário Oficial da União, a portaria ainda prevê que médicos informem as autoridades policiais, mas sem a palavra "obrigatória", que constava na primeira versão da norma. A medida é recomendada nos "casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro". Na nova portaria, o Ministério da Saúde cita projeto aprovado em 2018 que torna a ação penal relacionada a crime sexual contra vulnerável "pública incondicionada", ou seja, independe da denúncia feita pela vítima.

Para Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Biotética, a atualização da portaria mantém o maior entrave para acesso aos procedimentos: exigência de notificar a autoridade policial. Para ela, a norma segue ilegal. "A portaria cria confusão entre o sigilo profissional do médico e a orientação de informar o sistema de polícia. Dificulta o acesso à saúde. É inconstitucional."

A avaliação da advogada é de que há desconhecimento, por parte do governo, sobre a "dinâmica da violência doméstica, sexual e de gênero". "As mulheres, quando não buscam denunciar, sabem o porquê de fazerem isso. Muitas vezes o agressor é alguém próximo. Ela pode estar sob ameaça, viver com o agressor, ser dependente dele. Não é simples denunciar."

Outra alteração na norma feita pelo Ministério da Saúde foi no trecho que determina que os profissionais de saúde devem "informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada". Esta parte foi totalmente suprimida na nova versão da portaria.Para especialistas, . a regra representava uma forma de "maus-tratos" às vítimas de estupro e tinha o objetivo de convencê-las a não realizar o aborto legal.

A professora de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV Direito SP) Eloísa Machado de Almeida afirmou que mesmo após as alterações a medida continua a ser irregular e deverá ser derrubada pelo Supremo. "A nova portaria segue transformando médicos em delatores e mulheres vítimas em investigadas."

Pressão. Em reunião com senadores na semana passada, realizada a portas fechadas, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, foi pressionado a fazer alterações na portaria. A norma chegou a ser classificada como "completamente ilegal" pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na época em que foi publicada.

Mas as mudanças também não agradaram a aliados de Jair Bolsonaro. Pelo Twitter, o blogueiro Allan dos Santos, do site governista Terça Livre, atacou Pazuello e deu a entender que rompeu com Bolsonaro. "Quando um PSOL da vida força o STF é uma coisa. Quando um MINISTRO DO PRESIDENTE @jairbolsonaro facilita o ABORTO é INADMISSÍVEL." Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que as alterações foram feitas após "contribuições técnicas para adequação da portaria". "A normativa mantém o apoio e a segurança jurídica aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento."

Defesa de Bolsonaro

"Não vai de pronto acreditando a qualquer custo na internet, dá uma pesquisa", disse o presidene em sua live ontem, destacando que o aviso à polícia nos casos de aborto está mantido