Correio braziliense, n. 21039, 31/12/2020. Cidades, p. 13

 

Entrevista - Rejane Suxberger

Jéssica Cardoso 

31/12/2020

 

 

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio cresceram 1,9% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano passado. Na véspera de Natal, o assassinato da juíza Viviane Vieira pelo ex-marido, na frente da três filhas, no Rio de Janeiro, chocou o país e reforçou o alerta para a necessidade de um enfrentamento eficaz em da violência contra as mulheres. Em entrevista ao programa CB.Poder — parceria do Correio com a TV Brasília —, a juíza e titular da Vara de Violência Doméstica de São Sebastião, Rejane Suxberger, chamou a atenção para a banalização e a minimização da violência doméstica. “O feminicídio não surge do nada. Ele surge em uma sociedade que é violenta e que banaliza as questões de gênero e minimiza a violência contra a mulher. O ápice desse arcabouço todo é o feminicídio”, afirma. A juíza ainda destaca a importância da educação e de uma aplicação eficaz da Lei Maria da Penha. De acordo com Rejane, a norma é a terceira melhor do mundo, mas é preciso que o Estado assegure sua eficiência ao garantir a segurança e o acolhimento da mulher desde a entrada na delegacia, para fazer a denúncia, até o último recurso, no Supremo Tribunal Federal. Confira os principais trechos da entrevista.

O caso da juíza assassinada no Rio de Janeiro, infelizmente, retrata a prática do feminicídio no Brasil. Por que isso acontece?

Infelizmente, nós estamos de luto não só com a morte da Viviane, mas com a morte de tantas outras mulheres. Essa época do ano tem um fator de risco maior para a mulher, porque envolve a presença do agressor, que quer esse contato com as vítimas e com os filhos. Envolve também a questão da presença do álcool nas festas de fim de ano. O caso da Viviane também traz um ponto que nos inquieta e nos faz buscar uma reflexão maior, por se tratar de uma juíza, bem empregada, que tinha um empoderamento e que, infelizmente, sofreu o feminicídio. Isso acontece porque a gente ainda vive em uma sociedade em que a violência de gênero é minimizada e banalizada. Essa violência está no seio da sociedade. As relações de poder ocorrem de forma não linear. O homem não aceita, por exemplo, que a mulher dê a última palavra ou rompa o relacionamento. Isso demonstra a desigualdade de poder que existe dentro de casa. É importante destacar que quanto mais independente a mulher fica, menos subordinada ela está e maior é o risco dela sofrer essa violência.

No caso da juíza, tem outros dois fatores que também são muito comuns no feminicídio: o assassinato na frente das crianças e o uso de arma branca.

Sim. Trabalhamos com uma situação chamada violência vicária, que são aquelas vítimas secundárias à vítima principal. Viviane era a vítima principal, mas as crianças se tornaram as secundárias a partir do momento em que elas passaram a assistir à violência do pai contra a mãe. Essa violência acaba trazendo grandes consequências para a mulher, porque ela sabe do risco que corre, mas ela tenta ceder aos pedidos e exigências, por exemplo, do encontro no dia de Natal ou encontros no fim de semana, com a esperança de que o agressor pare de perturbar ou de cometer a violência. No entanto, isso é um mecanismo que o agressor utiliza para continuar perpetuando a violência contra a mulher. Sobre a questão da arma, infelizmente, vivemos em uma sociedade que acaba idolatrando a utilização da arma de fogo e percebemos que o ambiente mais inseguro para mulher é dentro de casa.

O feminicídio é geralmente o fim de toda uma história de medo, ameaça e outros tipos de violência que vai sendo construída. Os estudiosos da área falam em ciclo dessa violência doméstica. Poderia falar sobre essas etapas?

O feminicídio não surge do nada. Ele surge em uma sociedade que é violenta e que banaliza as questões de gênero e minimiza a violência contra a mulher. O ápice desse arcabouço todo é o feminicídio. A mulher que passa pela violência doméstica, apresenta alguns ciclos, como o de tensão, em que há a eminência dessa violência. Em seguida, o acontecimento da violência em si e, por fim, o que chamamos de período da “lua de mel”, que é o momento em que o agressor fala que vai mudar ou remete a responsabilidade a outros fatores, como álcool, depressão e situação financeira. Quando a mulher se encontra nesse local da “lua de mel”, ela realmente acredita que há uma mudança, principalmente por causa de uma socialização diferenciada que é imposta às mulheres. Nós nos responsabilizamos pela cura desse homem quando, na verdade, a responsabilidade é totalmente dele. Quando as mulheres estão diante de situações como essa, é bastante comum, por exemplo, a retirada das medidas protetivas. Isso tudo são fatores que a gente precisa examinar ponto a ponto. Não há como fazer uma crítica ao comportamento da vítima. Uma pergunta que ouvi bastante esses dias [sobre o caso da juíza] foi porque ela retirou a escolta quando, na verdade, a pergunta que nós deveríamos fazer é: por que esse homem matou essa mulher? Nós precisamos mudar até mesmo as formas de questionar, visualizar e tratar essas questões da violência contra a mulher.

A violência doméstica não é só agressão física. Há outros tipos de violência previstos na legislação. Poderia falar sobre esses outros tipos?

Eu sempre digo que, se a violência doméstica começasse com agressão física, nenhuma mulher permaneceria no ciclo da violência. Toda violência doméstica vem acompanhada de uma violência psicológica, prevista na nossa legislação. O homem tenta minar, subestimar e diminuir a mulher. Todo esse arcabouço acaba levando à violência física e até ao feminicídio. Nós temos também a violência moral. O homem tenta difamar e injuriar a mulher no grupo familiar e no seu ciclo de amizade. Temos a violência financeira, quando os homens acabam dilapidando o patrimônio de muitas mulheres; e, por fim, a violência sexual, que muitas mulheres sofrem durante um relacionamento e poucas percebem que esse ato é rechaçado pela legislação. Por isso que é tão importante a gente trabalhar sempre falando da legislação. As mulheres precisam ser informadas dos seus direitos e saber o tanto que a lei as protege para que elas não permaneçam em relacionamentos abusivos.

Voltando para o caso da juíza Viviane, o ministro Luiz Fux divulgou uma nota dizendo que o STF e o CNJ estavam comprometidos com o desenvolvimento de ações que identifiquem a melhor forma de prevenir e erradicar esse tipo de crime. De que forma o Judiciário pode atuar para um melhor enfrentamento?

É importante destacar que nós temos a terceira melhor lei de violência de gênero no mundo. Temos uma legislação muito importante e completa e conseguimos, durante esses onze anos, não ter uma alteração nessa legislação. Isso é o mais importante porque, para que a lei tenha aplicabilidade, precisamos que ela perdure durante um tempo na nossa sociedade. No meu ponto de vista, como magistrada e como pessoa que estuda as questões de gênero, eu não vejo a necessidade, hoje, de mais alterações legislativas no sentido de mudanças na Lei Maria da Penha. Nós precisamos que essa lei seja implementada.

Nesse sentido, o compromisso de cuidado com o outro também passa pela educação?

Com certeza. Notamos que existe uma diferença, entre meninas e meninos, nas crenças em relação às violências. Hoje, uma criança de 11 anos sabe que existe uma lei chamada Maria da Penha e que não pode agredir uma mulher. Ela já tem essa noção, coisa que décadas atrás passava despercebida. É importante que as escolas trabalhem as questões de gênero e falem da violência. Eu tomo como exemplo sempre uma loja de brinquedos. Quando você entra numa loja de brinquedos, no departamento dos meninos há super-heróis, armas e jogos criativos. Agora, se você olha para o lado das meninas, é tudo cor-de-rosa e a gente se depara com rodo, balde, vassoura, fogão, geladeira. Com isso, nós estamos ensinando que a responsabilidade do espaço privado é das meninas e a dos meninos é o espaço público. Isso tem que ser mudado. Os espaços precisam ser compartilhados com a corresponsabilidade de homens e mulheres.

Nessa discussão de ocupar os espaços, entra a importância de a mulher estar em postos de decisão, em que ela possa discutir sobre a violência doméstica e implementar mudanças?

Com certeza. Basta nós olharmos para os nossos cargos principais, seja Legislativo, Executivo, seja Judiciário. Por mais empoderadas que estejamos, mesmo estando dentro das universidades nos especializando, as principais ocupações ainda são masculinas. As tomadas de decisões, as leis, são feitas por homens e para homens. O quanto isso reflete na ponta? O quanto ainda precisamos ocupar dentro das carreiras para que a nossa voz seja escutada e para que nós não sejamos tão invisibilizadas como ainda acontece?

Um dos pontos, quando a gente fala de violência doméstica, é o amor como um fator que acaba mantendo as relações tóxicas. A senhora poderia falar sobre a questão do afeto nessas relações?

Infelizmente, nós vivemos em uma sociedade que tem o amor romantizado. Quando crianças, aprendemos com os contos infantis a presença de um homem que vem para salvar e que a mulher precisa de um grande amor para ser feliz. Isso contribui bastante para violência porque a mulher permanece no ciclo da violência com a esperança de que ela vai conseguir mudar aquele homem. Muitas vezes também a violência é confundida com o amor. É importante que a gente verifique a questão dos mitos que acabam envolvendo essas relações, que dizem que a mulher permanece na relação porque ela quer ou porque ela gosta. Ninguém gosta de viver em uma situação de violência. Existem outros fatores e é necessária uma análise para podermos diagnosticar a permanência da mulher dentro do ciclo de violência. E, principalmente, é preciso desmistificar essa situação de que o amor é a desculpa para que ocorra a violência.

Outro discurso comum é que o homem estava cego pelo ciúme, descontrolado emocionalmente quando cometeu o crime. Como avalia isso?

O primeiro ponto é que nós temos que deixar de tratar os agressores e a violência doméstica como uma patologia. Não é uma doença. É um comportamento social que está enraizado e se perpetuando ao decorrer dos anos. O segundo ponto é que fatores de risco, como questão financeira, álcool, droga, que são utilizados como desculpas para a violência, também não podem ser usados como um gancho para minimizar ou banalizar essa violência que a mulher sofre.

Outro ponto significativo na decisão da mulher fazer a denúncia é: o que vão pensar dela. Isso também é algo que impede a mulher de falar?

Com certeza. A violência doméstica é um segredo. As mulheres têm medo e vergonha da violência e são pontos que favorecem o agressor e acabam contribuindo para a perpetuação dessa violência. Você contar para as pessoas que são próximas a você já causa vergonha, imagina levar essas questões para pessoas do sistema de justiça, que você não conhece. Por isso que eu falo da importância da mudança comportamental de todo o sistema de justiça no acolhimento dessas mulheres. Não basta a gente pedir que denuncie, é necessário que nós estejamos preparados para acolher essas mulheres que chegam até nós.

* Estagiária sob supervisão de Mariana Niederauer