Correio braziliense, n. 21036, 28/12/2020. Artigos, p. 11

 

Uma cidade condenada a ser moderna e eterna

Paulo José Araújo da Cunha 

28/12/2020

 

 

Há 60 anos, uma nova flor do cerrado brotava na vastidão do Planalto. Uma flor estranha, feita de ousadas curvas e pétalas de concreto. E o mais surpreendente: a flor tinha... asas! Talvez isso explique porque Brasília nasceu sob o signo da poesia. Poesia que é possível respirar nos traços curvos e voluptuosos de um poeta do concreto chamado Oscar Niemeyer, que não economizou delírio para fazer nascerem de sua prancheta os traços de obras que assombraram o mundo. Delírios que só se tornaram possíveis graças aos cálculos do poeta pernambucano Joaquim Cardoso, que provou ao mundo que o concreto é capaz de voar.

Palácios, monumentos, pontes, museus: tudo plantado sobre um desenho simples como um verso alexandrino perfeito. Um desenho poeticamente elaborado pelo urbanista Lúcio Costa, que, ao cruzar duas linhas, deu início a uma das mais radicais revoluções urbanísticas da história. E daí surgiu a cidade que seria adornada pela poesia dos jardins de um artista chamado Roberto Burle Marx. Além da expressão poética das esculturas de Ceschiatti, a cidade exibe a arte de Athos Bulcão, que fez poesia moderna e interativa em azulejos que revestem muitos de seus espaços.

A libélula plantada na aridez dos campos de Goiás inaugurou a Era da Ousadia, e anunciou ao mundo o gênio criador de um povo até então recolhido à tradição e à convenção que, de repente, revelou ter uma alma rebelde e atrevida. Capaz de olhar o mundo e desafiar: - depois de conhecer esta cidade, será que alguém sabe de outra obra humana que melhor sintetize a palavra Futuro?

Assim, a cidade alçou voo, ganhou fama e atraiu a admiração e o espanto de quantos a viram pela primeira vez. O astronauta Yuri Gagárin, ao ver-se em plena Esplanada dos Ministérios, não se conteve:

- A impressão que tenho é a de estar chegando a um planeta diferente.

Brasília seduziu artistas de todas as artes, de todas as linguagens, de todos os sotaques.

"Amorosa e clara

A cidade

Voa

Com as próprias asas" (Joanyr de Oliveira)

Mesmo seu criador, aquele menino de Diamantina, filho da professora Júlia, não resistiu à poesia. Ao fazer a apresentação de um livro do cronista Clemente Luz, Juscelino Kubitscheck rendeu-se à emanação poética de cada tijolo, de cada saco de cimento, de cada carrinho de pedreiro, de cada pá manejada pelas mãos calosas dos candangos envolvidos na epopeia da construção: "Toda a poesia das longas noites de trabalho, toda a esperança das horas infatigáveis da construção, estão contidas em suas páginas. É um diário que fala e faz chorar de saudade. Foi feito em prosa, mas é o poema da cidade" (JK, 1960).

Em tudo Brasília se banha na poesia de que se nutre. Tudo nela é puro espanto, e assim permanecerá, perturbadora visão às futuras gerações. Desde que Niemeyer obrigou o concreto a fazer curvas audaciosas aos horizontes infinitos que se descortinam para onde se volta o olhar e ao fogo que ensanguenta o céu do Planalto a cada por-de-sol que a emoldura. Tudo deslumbra. A ponto de o escritor francês André Malraux imaginar as belas ruínas que se formariam caso a cidade fosse destruída. Clarice Lispector conta que um dia morreu e, quando abriu os olhos, era Brasília e ela estava sozinha no mundo.

Brasília sabe que ninguém, em qualquer tempo ou lugar, roubará dela o título de "A cidade mais Moderna". Mas achou pouco. Por isso não esperou três milênios, como Roma, para ingressar na eternidade.