Correio braziliense, n. 21035, 27/12/2020. Mundo, p. 10

 

Europa se arma contra o inimigo

Rodrigo Craveiro 

27/12/2020

 

 

Edith Kwoizalla nasceu durante a pandemia da gripe espanhola, que matou pelo menos 50 milhões de pessoas. Ao receber a vacina do consórcio Pfizer/BioNTech, em um asilo de Halberstadt (centro-norte da Alemanha), a idosa de 101 anos sorriu por detrás da máscara azul. Hoje, enquanto a nova cepa do Sars-CoV-2 espalha-se pelo continente, cidadãos dos 27 países-membros da União Europeia (UE) deverão começar a experimentar a mesma sensação de alívio sentida por Edith, a primeira cidadã alemã a ser imunizada.

A Comissão Europeia, órgão executivo do bloco, pretende estender a campanha de imunização até terça-feira. Além da Alemanha, a Hungria e a Eslováquia anteciparam a vacinação de seus cidadãos e aplicaram as primeiras doses ontem, quando o mundo passou da marca de 80 milhões de infectados pelo coronavírus. Até o fechamento desta edição, a covid-19 tinha matado mais de 540 mil pessoas na Europa e 1,75 milhão em todo o planeta.

Os primeiros carregamentos do fármaco da Pfizer/BioNTech foram entregues a hospitais da França, da Espanha e da Itália. Terão prioridade na imunização os idosos e os funcionários do setor de saúde envolvidos na resposta à pandemia. "Nós estamos começando a virar a página em um ano difícil. Hoje, é o dia da entrega e, amanhã, a vacinação contra a covid-19 inicia-se em toda a União Europeia", declarou, em vídeo divulgado, ontem, nas redes sociais, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. "A vacina estará disponível, ao mesmo tempo, a todos os países da UE. As pessoas começarão a tomá-la em Atenas, Roma, Helsinque, Sófia. Nosso Dia da Vacinação Europeia é um tocante momento de unidade e uma história de sucesso da Europa", disse.

Ursula assegurou que a UE garantiu doses suficientes para os 450 milhões de cidadãos de países-membros do bloco. "A vacinação nos ajudará a ter a nossa vida normal de volta, de modo gradual. Uma vez que um número suficiente de pessoas for vacinado, poderemos começar a viajar, encontrar nossos familiares e amigos novamente. Até lá, precisamos continuar a ser cautelosos e proteger a nós mesmos e aos nossos entes queridos do vírus." A agência de notícias France-Presse informou que caminhões frigoríficos carregados de vacinas saíram da fábrica da Pfizer em Puurs, nordeste da Bélgica, escoltados por forças de segurança.

Apesar do otimismo ante a imunização, o temor da nova cepa do Sars-CoV-2 paira sobre o mundo. A variante, 70% mais infecciosa, foi detectada pela primeira vez no Reino Unido e na África do Sul. Ontem, os primeiros casos foram registrados na Espanha, na Suécia, na Itália, na França, no Japão e no Canadá. O jornal espanhol El País divulgou que quatro cidadãos de Madri foram infectados. Alemanha, Dinamarca, Holanda e Austrália haviam confirmado a circulação da nova variante.

Especialistas
O epidemiologista Antoine Flahault (leia Duas perguntas para) — diretor do Instituto de Saúde Global da Universidade de Genebra (Suíça) — afirmou ao Correio que somente metade dos europeus expressou a vontade de ser imunizada contra a covid-19. "Há muita hesitação sobre a vacinação, o que não é algo totalmente inesperado. Além de ser de um tipo totalmente novo (RNA mensageiro), a vacina foi produzida rapidamente e tem sido altamente politizada", comentou. "No entanto, meu sentimento é o de que, após milhões de pessoas serem imunizadas em todo o mundo, sem efeitos colaterais importantes registrados, veremos, progressivamente, mais adesão à vacina em todos os lugares."

Flahault considera importante que os idosos e a população de alto risco estejam sendo imunizados. "As pesquisas indicavam que essa parcela da sociedade era a mais resistente. Se conseguirmos proteger uma parte significativa dela rapidamente, a vacina pode mudar o jogo no curso da pandemia. Os lockdowns foram implementados para evitar a sobrecarga dos hospitais", observou. "Resguardar idoso e vulneráveis pode evitar hospitais lotados e prevenir lockdowns, antes de se pensar na erradicação do coronavírus."

Para Veer Pushpak Gupta, médico do National Health Service (NHS) que há oito meses trata pacientes com a covid-19 no Reino Unido, a vacinação na Europa é uma "ótima notícia". No entanto, ele prefere a cautela. "A prevenção da disseminação do Sars-CoV-2 somente ocorrerá quando entre 60% e 70% da população tiver sido vacinada, o que levará a uma imunidade de rebanho eficaz", explicou ao Correio. "Apesar de a nova cepa ser 70% mais infecciosa, isso não significa que haja um aumento na mortalidade ou na morbidade. Até onde sabemos, os testes de PCR e as vacinas são efetivas contra a nova cepa."

Professor de epidemiologia da Universidade de Bremen (Alemanha), Hajo Zeeb celebrou a imunização na Europa como uma atitude para dar segurança à população nos próximos meses. "No geral, 60% dos alemães querem ser vacinados. A porcentagem é mais baixa na França, mas similar ou mais alta em muitos países. Todas as nações estão ansiosas em começar a vacinação e em enfrentar o grande desafio logístico de imunizar as pessoas", afirmou à reportagem. Zeeb acha "muito provável" que a nova cepa se espalhe. "Provavelmente, ela já existia em setembro. Essa variante preocupa por sua maior infectividade. A boa coisa é que sabemos as medidas que funcionam contra ela."

Eu acho...

"A nova cepa do vírus encontrada na Grã-Bretanha e na África do Sul naturalmente se espalhará pelas nações devido às viagens internacionais e à globalização. Na minha opinião, isso já ocorreu. Se os laboratórios de diversos países verificarem, descobrirão que a cepa existe dentro da população."

Veer Pushpak Gupta, especialista em medicina geral e em saúde global, médico do National Health Service (no Reino Unido)

540 mil

Total de mortos durante a pandemia da covid-19 na Europa