Correio braziliense, n. 21033, 25/12/2020. Política, p. 4

 

Quando o exemplo é o melhor remédio

Augusto Fernandes 

25/12/2020

 

 

Um dos personagens notórios no enfrentamento da pandemia de covid-19 no Brasil, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), viu-se em maus lençóis esta semana ao viajar para a Flórida, nos Estados Unidos, onde passaria as festas de fim de ano em Miami. Em meio à péssima repercussão da viagem, à frustração sobre os resultados vagos da CoronaVac e à confirmação de que o vice-governador, Rodrigo Garcia (DEM), contraíra covid-19, Doria decidiu retornar ao Brasil. A atitude do governador, contudo, foi apenas mais uma dentre as várias condutas erráticas dos governantes do país na batalha contra o novo coronavírus. São evidentes as contradições de autoridades públicas que pedem a colaboração dos brasileiros para a conter a doença, mas nem sempre dão o melhor exemplo à sociedade.

O protagonista, nesse cenário, é o presidente Jair Bolsonaro. Mesmo já tendo sido diagnosticado com covid-19, ele menospreza os perigos da doença que já matou quase 190 mil brasileiros e atingiu mais de 7 milhões de pessoas no país. O mandatário não se preocupa em evitar aglomerações e recusa-se a utilizar máscaras faciais. O presidente é reconhecido, ainda, por questionar a eficácia das futuras vacinas e diz que não pretende tomar o imunizante, contribuindo para o movimento antivacina.

As incoerências, entretanto, não se restringem apenas ao desrespeito às medidas de prevenção. Durante a pandemia, o país viu governantes serem alvos de denúncias por crimes contra a administração pública.No Rio de Janeiro, o governador afastado Wilson Witzel (PSC) responde a um processo de impeachment e está impedido de exercer o cargo por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), devido a suspeitas de corrupção na área da Saúde em plena pandemia.

Na cidade do Rio de Janeiro, o prefeito afastado Marcelo Crivella (Republicanos), sempre crítico às medidas de isolamento social, não só minimizou a pandemia como abandonou o sistema público de saúde carioca. Nesta semana, foi preso suspeito de ser o responsável por um esquema de corrupção milionário. 

Descaso
Na avaliação de cientistas políticos ouvidos pelo Correio, os episódios protagonizados por políticos pelo país simbolizam o descaso que virou o combate à pandemia da covid-19 no Brasil. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Ricardo Ismael diz que o principal problema foi a falta de cooperação e coordenação entre governo federal, estados e municípios, mas ele destaca que as atitudes de cada governante deixaram a desejar.

Para Ismael, "posturas que induzem a comportamentos individuais de risco, que contribuem para a propagação do vírus, são inaceitáveis". "Existe uma situação que não está sob controle. Portanto, os governantes, sejam eles quem forem, não podem induzir a população a ações que façam que a disseminação do vírus aumente e tenhamos um aumento no número de óbitos. Se não tivermos o apoio da população, será pior, e tornará mais difícil ainda o enfrentamento da pandemia por parte de médicos, enfermeiros e hospitais", alerta.

O cientista político Geraldo Tadeu, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acrescenta que "o Brasil está diante de uma guerra, mas nós estamos lutando de mãos nuas porque os generais não estão em campo". "Se os governantes que fazem as normas não se submetem a elas, como podem pedir para que a população se submeta às regras? A forma como os políticos agem influencia as demais pessoas. O exemplo deve vir de cima", afirma.

Segundo ele, "o país está pagando o preço pelas posturas negacionistas dos políticos". "Se o Ministério da Saúde tivesse exercido o papel de coordenar esforços e estabelecer diretrizes nacionais para sensibilizar a população, poderia ser diferente. Mas, desde o início, foi uma tragédia de erros o combate à pandemia. Vemos pessoas morrendo todos os dias e os políticos brigando entre eles. Assim, não ganharemos a guerra."

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Nas entrelinhas: a vacina do Natal 

Luiz Carlos Azedo 

25/12/2020

 

 

Talvez esse seja o pior Natal de nossas vidas, em termos sociais, é claro, porque a experiência de vida de cada um é que determina a avaliação. Festa que congrega a família, confraterniza os amigos, dissemina amor e solidariedade, neste ano, a data magna do cristianismo, que é comemorada por todas as religiões ecumênicas, está sendo marcada pela maior tragédia humanitária já vista por nossas gerações, desde a Segunda Guerra Mundial. Aqui no Brasil, só não é maior por causa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, apesar de um presidente da República que, com seu negativismo, no combate à crise sanitária, sabota seu povo, seu governo e, em ultima instância, a si próprio.

Entretanto, é Natal. Os miseráveis, os enfermos, os condenados, todos sem exceção, de alguma forma, são acarinhados com votos de esperança e compaixão. Os poetas, os cantores, os cronistas, todos que podem espalhar amor e esperança se encarregam de fazer chegar sua mensagem àqueles que estão na pior. De igual maneira, os trabalhadores dos serviços essenciais, de plantão, mesmo privados da convivência com suas respectivas famílias, com sua labuta, principalmente os cientistas e o pessoal da saúde, mandam o recado: confiem, estamos cuidando de vocês. A magia do Natal é uma enorme força transformadora da sociedade, no sentido civilizatório, mesmo agnósticos e ateus devem reconhecê-lo.

A propósito, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, no livro O Gene egoísta, publicado em 1976, sua obra-prima, tenta explicar a evolução biológica ao mostrar como certas moléculas replicadoras (ancestrais dos genes) poderiam ter evoluído de modo a formar as primeiras células e, a partir daí, todos os seres vivos existentes. O microscópico encontro de um vírus com uma bactéria, por exemplo, é um grande evento histórico da criação, que se reproduz na natureza a todo instante e provoca mutações genéticas. A covid-19 é fruto desse fenômeno.   Dawkins tentar explicar o problema profundo de nossa existência ao sugerir que os organismos vivos são sofisticadas máquinas de sobrevivência, eficientemente moldadas pelo processo de evolução para promover a replicação sexuada dos genes nelas contidos. Entretanto, essa abordagem levanta sérios questionamentos filosóficos. Seremos meros replicadores de genes, controlados por eles. Onde entra a consciência? Dawkins afirma que genes não têm vontades próprias ou valores morais. Aqueles genes que apresentam um comportamento que seria visto como egoísta pelos seres humanos são os que se mantêm representados dentro dos genomas das espécies, ao longo do processo evolutivo, com o passar dos anos e milênios. O altruísmo seria uma estratégia de sobrevivência, principalmente nos seres humanos.

Eugenia

Genes são polímeros químicos de fósforo e carbono, associados a uma molécula de açúcar e bases nitrogenadas, encapsulados em duas fitas reversas e complementares; ou seja, genes são codificados em moléculas de DNA. Dawkins sugere uma forma de seleção natural darwiniana na qual as moléculas quimicamente mais estáveis perduravam — enquanto aquelas mais instáveis eram destruídas. A evolução sempre dependeu da adaptação, uma molécula mais estável é mais adaptada ao universo em que vivemos. Assim como existe luta pela sobrevivência na sociedade humana, existe, também, num ambiente molecular.

Hoje, sabemos que os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem; aqueles que foram menos aptos e não deixaram descendentes. Hoje, cerca de 4 bilhões de anos depois, Dawkins explica: “Com certeza, eles não morreram pois são antigos mestres na arte da sobrevivência. (...) Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores. Agora, eles recebem o nome de genes e nós (todos os organismos vivos) somos suas máquinas de sobrevivência.”

O gene passa de corpo em corpo através das gerações, manipulando as máquinas de sobrevivência por meio de instruções escritas em linguagem digital (A, C, T e G), abandonando tais corpos mortais na medida que eles vão ficando senis e duplicando-se em sua prole. As instruções dizem basicamente: copie-me, ou seja, viva e reproduza. A reprodução é o processo de cópia dos genes, é o processo que os mantém vivos ao longo dos tempos. Socialmente falando, porém, essa eugenia (seleção de certos genótipos para a reprodução em lugar de outros) é totalmente inaceitável. Lembra as teorias de superioridade ariana e o Holocausto.

Sim, os mais fortes sobreviverão. E por que não os mais fracos? É para isso que serve a medicina. A postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus — “a melhor vacina é pegar o vírus” — é um inaceitável darwinismo social. Fé e confiança na ciência são a melhor remédio contra a desesperança.