Correio braziliense, n. 21031, 23/12/2020. Política, p. 2

 

A falência política do Rio de Janeiro

Renato Souza 

Ingrid Soares 

23/12/2020

 

 

Em situação crítica por causa da pandemia do novo coronavírus, o Rio de Janeiro passa, ao mesmo tempo, pelo desmoronamento da estrutura política. Quase quatro meses após o governador Wilson Witzel (PSC) ser afastado do cargo, por acusações de corrupção, o prefeito da cidade, Marcelo Crivella (Republicanos) foi preso preventivamente, ontem, por ordem de uma desembargadora do Tribunal de Justiça do estado. Horas depois, porém, o ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), modificou a decisão para prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica. O político, que estava a nove dias de terminar o mandato, é acusado de liderar um esquema ilegal na prefeitura, chamado de "QG da Propina" (leia Entenda o caso), que teria movimentado, ao menos, R$ 53 milhões.

A operação foi deflagrada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, e os mandados, cumpridos pela Polícia Civil. O prefeito foi detido em casa. Além dele, foram presos o empresário Rafael Lopes e o delegado aposentado Fernando Moraes. O ex-senador Eduardo Lopes, também do Republicanos, está sendo procurado pela polícia. Ele não foi encontrado no endereço residencial. Lopes era o suplente de Crivella no Senado e foi secretário estadual de Agricultura, Pecuária, Pesca e Abastecimento do governo Witzel. Entre os denunciados, está, também, o marqueteiro Marcello Faulhaber, que, na última eleição, trabalhou na campanha de Eduardo Paes.

O MP justificou a prisão de Crivella com o argumento de que o prefeito ameaçava as investigações — ele tinha, por exemplo, fornecido um telefone celular que não era o seu quando foi alvo de buscas em setembro.

A Promotoria calculou o momento da operação levando em conta o período eleitoral — quando receberia críticas se prendesse o prefeito e candidato à reeleição — e a perda do foro, que mudaria toda a competência do caso.

Ao ser preso, Crivella se disse vítima de perseguição política, sem citar nomes. "Lutei contra o pedágio ilegal, tirei recursos do carnaval, negociei o VLT (veículo leve sobre trilhos), fui o governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro", alegou ele.

Corrupção sistêmica
Em agosto deste ano, investigações sobre desvios milionários em recursos públicos, destinados à educação e saúde do Rio, levaram o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a afastar do cargo, por seis meses, o governador Wilson Witzel. A decisão da Corte atingiu, de maneiras distintas, toda a cúpula do Executivo carioca, já que o vice-governador Cláudio Castro, e o presidente da Assembleia Legislativa do Estado, André Ceciliano, também são alvos das apurações. No entanto, Castro não foi afastado e assumiu o comando do estado.

Em 2018, foi preso o ex-governador Luiz Fernando Pezão, que estava em exercício. Ele acabou detido pela Lava-Jato no Palácio das Laranjeiras, sede do governo. Pezão foi denunciado por Carlos Miranda, então operador financeiro de Sérgio Cabral, outro ex-governador que foi para a cadeia acusado de corrupção. Em comum, as investigações apontam que a corrupção no governo do Rio, tanto no Executivo quanto na Assembleia Legislativa, e até mesmo no Judiciário, é sistêmica e continua em andamento a cada nova gestão.

O cientista político Danilo Morais dos Santos, mestre em ciência política e professor do MBA em Gestão de Políticas Públicas do Ibmec/DF, destacou "olhando a situação do Rio, temos uma generalização do crime, do narcotráfico, das milícias". "O crime foi muito capaz de cooptar o estado. Foram competentes em penetrar no governo", avaliou.

(Com Agência Estado)

Acusação
Em janeiro, assume Eduardo Paes (DEM), prefeito eleito, e que também é alvo de um processo na Justiça Eleitoral, acusado de receber R$ 10 milhões em propina. Ele teve os bens bloqueados, no curso da investigação. Durante debates na campanha eleitoral, Crivella, que tentava a reeleição, chegou a dizer que Paes seria preso antes de assumir o mandato, caso fosse vencedor do pleito.

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QG da propina 

23/12/2020

 

 

O Ministério Público aponta a existência de um "QG de Propina", que seria gerido pelo prefeito Marcelo Crivella. Os pagamentos seriam feitos por empresários em troca de vantagens em contratos da prefeitura ou por verbas públicas. Segundo o MP, o empresário Rafael Alves era o intermediário. Ele tinha poderes para interferir na administração pública, oferecendo vantagens em troca de propina.

As investigações indicam que empresas que tinham interesse em fechar contratos ou tinham dinheiro para receber da Prefeitura entregavam cheques para o empresário, irmão de Marcelo Alves, então presidente da Riotur. Em troca, Rafael facilitaria a assinatura dos contratos, ou o pagamento das dívidas. De acordo com o MP, o QG da Propina arrecadou mais de R$ 50 milhões durante o mandato de Crivella.

O esquema foi descoberto a partir da delação premiada do doleiro Sérgio Mizrahy, preso no âmbito da Operação Câmbio Desligo, um dos desdobramentos da Lava-Jato fluminense.
Por ter sido o principal articulador econômico para a campanha de Crivella em 2016, Rafael Alves exercia influência constante sobre o comandante carioca. Segundo o MP e a Justiça, o prefeito acatava ordens do empresário como se fosse um subordinado: desfazia atos administrativos a pedido dele, por exemplo.

Rafael, de acordo com as investigações, trabalhava de uma sala na Prefeitura que ficou conhecida como QG da Propina.

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Nas entrelinhas: Cidade maravilhosa 

Luiz Carlos Azedo 

23/12/2020

 

 

Refrão: "Cidade maravilhosa,/ Cheia de encantos mil!/ Cidade maravilhosa,/ Coração do meu Brasil! (Bis)". Primeira parte: "Berço do samba e das lindas canções/ Que vivem n'alma da gente,/ És o altar dos nossos corações/ Que cantam alegremente". Segunda parte: "Jardim florido de amor e saudade,/ Terra que a todos seduz, /Que Deus te cubra de felicidade, /Ninho de sonho e de luz". O velho Sérgio Cabral, pai, foi quem me chamou a atenção para o fato de que o famoso hino carioca Cidade Maravilhosa, de autoria de André Filho, começa como se a orquestra fosse tocar uma sinfonia e logo vira marchinha de carnaval.

Coube ao maranhense Coelho Neto — que hoje empresta o nome a um dos subúrbios cariocas da antiga Central do Brasil —, cunhar a expressão "cidade maravilhosa", num artigo publicado no jornal A Notícia, em 1908. Mais tarde, em 1928, publicaria um livro de contos com esse título. Era época em que a antiga capital da República fervilhava, em todos os sentidos, aspirando à condição de Paris dos trópicos, ambição criada após a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, no começo do século. O jornalista Ruy Castro relata essa época no livro Metrópole à beira mar (Companhia das Letras).

A marchinha surgiu logo depois, em 1934, mas somente fez sucesso no carnaval do ano seguinte. A primeira parte da música é realmente sinfônica, plagiado de Mimi é una civetta, o terceiro ato da ópera La Bohème, de Puccini. André Filho era amigo de Noel Rosa, com quem divide a autoria do samba "Filosofia", gravado por Mário Reis, em 1933. A amizade entre ambos, porém, gerou controvérsias sobre a autoria do hino carioca, que alguns atribuem ao poeta de Vila Isabel, como registrou Jacy Pacheco, em Noel Rosa e sua época: "Aqui nos lembramos de composições que ele deu e que vendeu. Que foram divulgadas com outros nomes... dentro da cidade maravilhosa, cheia de encantos mil..." Pode ser pura maldade.

André Filho morou na casa da mãe do músico Oscar Bolão entre o final dos anos 1950 até início dos 1960. Como sofria de problemas psiquiátricos, acabou internado no hospital da Ordem do Carmo. Ali, quando soube, tempos depois, por meio de um repórter do Diário da Noite, que "Cidade maravilhosa" tinha sido reconhecida como marcha oficial da cidade do Rio de Janeiro — por meio da Lei nº 5, de 5 de maio de 1960 —, segundo Bolão, enfiou a cabeça dentro do vaso sanitário e, dando descarga, gritava: "Tô rico, tô rico". Multiinstrumentista (piano, violão, bandolim, violino, banjo, percussão), compositor, cantor e radialista, ficou órfão muito cedo, sendo, por isso, criado pela avó. Começou a estudar música erudita aos 8 anos, com Pascoale Gambardella, e formou-se em ciências e letras no Colégio Salesiano de Niterói, RJ, onde foi colega de Henrique Foréis Domingues, o Almirante.
Sísifo

Cronista esportivo e historiador do samba, o velho Cabral dizia que Cidade Maravilhosa era uma síntese da alma do Rio de Janeiro: "Tudo vira marchinha de carnaval". E não é que, ontem à tarde, já havia virado meme, nas redes sociais, uma marchinha sobre a prisão do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Intitulada "Bispo no xadrez", a marchinha é muito cruel: "Crivella, Crivella/ Pode entrar / Já abençoamos a sua cela", diz o refrão. E segue adiante: "É essa aqui que escolhemos pro senhor/ Fica ao lado da do governador/ Tem um palquinho pra fazer os seus sermões/ Os carcereiros são seus novos guardiões (...)". É mais uma música de carnaval que vai para o acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), criado por Almirante. A verdadeira história dos cariocas é contada pelo samba e pelas marchinhas de carnaval. Está registrada no acervo do MIS, com cerca de 305 mil documentos, entre discos, partituras, fotos, cartas, textos e vídeos.

Voltando ao prefeito Crivella, havia sérias dúvidas sobre a necessidade de sua prisão, a 10 dias de passar o cargo para o prefeito eleito, Eduardo Paes (DEM). Era preciso comprovar que estava obstruindo a Justiça e tentando eliminar provas. Horas depois, o Superior Tribunal de Justiça acabou por revogar a detenção preventiva, mandando para a prisão domiciliar.

Do ponto de vista político, a prisão do prefeito carioca abre um novo ciclo de investigações criminais no Rio de Janeiro, envolvendo o partido Republicanos e a Igreja Universal do Reino de Deus. A prisão de Crivella deve ter deixado o presidente Jair Bolsonaro bastante cabreiro, devido às investigações que envolvem seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), muito próximos de Crivella, também no âmbito do Ministério Público e da Justiça fluminense.