Valor econômico, v. 21, n. 5173, 22/01/2021. Brasil, p. A4

 

EUA pedem ao Brasil ‘comunicação de respeito’

Daniel Rittner

22/01/2021

 

 

Embaixador americano fala em renovar canais com país
O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, destacou ontem a “importância das palavras” e uma “comunicação de respeito” para o sucesso das relações bilaterais sob a administração de Joe Biden na Casa Branca.

Em conversa com jornalistas, Chapman disse que é “bastante evidente para todo mundo” a ênfase do novo governo americano em questões ambientais e no combate às mudanças climáticas, bem como o desejo de fortalecer o multilateralismo, com a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Agora é o momento de estabelecer novos canais de comunicação entre o presidente Biden e o presidente brasileiro. A função da diplomacia é que essas conversas ocorram”, afirmou o embaixador.

Um dos diplomatas estrangeiros com mais acesso ao Palácio do Planalto e ao Itamaraty, Chapman usou termos que contrariam a narrativa adotada até agora pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo chanceler Ernesto Araújo. Bolsonaro alimentou o discurso de fraude nas eleições americanas. Araújo chamou os manifestantes em Washington no dia 6 de janeiro, em protesto que culminou com a invasão do Capitólio, de “cidadãos de bem” e escreveu em suas redes sociais que “duvidar da idoneidade de um processo eleitoral não significa rejeitar a democracia”.
Chapman, até agora um interlocutor preferencial de Bolsonaro e de Araújo na comunidade diplomática de Brasília, foi por um caminho oposto e expressou “rechaço completo” à invasão. Ele, que voltou de férias na segunda-feira, disse que estava em Washington no dia de manifestações violentas e criticou a proliferação de notícias com conteúdo manipulado.

“Ontem [em referência à posse de Biden] foi um novo começo. O começo de uma administração legalmente eleita, apoiada pela maioria dos eleitores em nosso sistema. [Uma eleição] decidida com clareza e democraticamente, certificada pelo Congresso e revisada pelos órgãos da Justiça”, afirmou o embaixador dos Estados Unidos.

“É um fato que precisamos enfatizar sempre. Temos que enfatizar a importância de notícias corretas, de que as informações falsas não sejam espalhadas. Fake news não são boas para ninguém”, acrescentou ele.

No dia 7, um dia após os acontecimentos violentos em Washington, Bolsonaro insinuou na tese da fraude: “O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora. Basicamente qual foi o problema, a causa dessa crise toda? Falta de confiança no voto. Então, lá, o pessoal votou e potencializaram uns votos pelos correios por causa da pandemia. E houve gente que votou três, quatro vezes, mortos votaram, foi uma festa”.

Ontem, o recado de Chapman foi numa direção bem diferente. “A nossa democracia funcionou, as instituições são sólidas, essa é a mensagem central”, disse o americano. Ele considerou “bastante construtiva” a carta enviada por Bolsonaro a Biden, indicando áreas de convergência. “Há sempre temas que vão continuar: temas econômicos, de saúde, educação, militares e de segurança.”

“Sempre haverá mudanças de um tipo ou de outro, mas a relação Brasil-Estados Unidos já tem tanta consistência que as nossas instituições trabalham em conjunto: o Departamento do Tesouro com o Ministério da Economia, o Departamento de Energia com o Ministério de Minas e Energia, o Fed com o Banco Central”, afirmou.
Mesmo reiterando a questão ambiental como prioridade de Biden, o embaixador disse que não tinha “informação adicional” neste momento, lembrando tratar-se do segundo dia da nova administração. Ele contou ter conhecido o presidente democrata quando servia como diplomata em Cabul, no Afeganistão, e depois voltou a vê-lo duas vezes ao atuar como ministro-conselheiro em Brasília.

Biden esteve no Brasil em 2014 e em 2015. “Com muita confiança, posso dizer que ele conhece melhor o Brasil do que qualquer outro presidente no primeiro dia de sua administração”, concluiu Chapman.
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Em live, Bolsonaro proíbe resposta de Araújo sobre Biden

Fabio Murakawa

22/01/2021

 


Para presidente, fala seria intromissão em política interna dos EUA, mas comenta sobre aborto na Argentina
O presidente Jair Bolsonaro proibiu ontem o chanceler Ernesto Araújo de responder a uma pergunta sobre a mudança de postura dos Estados Unidos sobre o aborto na Organização Mundial da Saúde (OMS). E, referindo-se a possíveis atritos com os americanos na área ambiental, ele afirmou que também há incêndios florestais na Califórnia.
A pergunta a Araújo foi feita por um jornalista da Jovem Pan na live semanal do presidente nas redes sociais. O jornalista se referiu à revogação pelo americano Joe Biden de uma lei que corta doações a entidades que defendam a legalização do aborto.

O presidente, entretanto, antecipou-se ao auxiliar. “Acho que não é o caso de entrar na política interna de outros países. Fala alguma coisa, mas sem interferir.”

Apesar da ordem para que Araújo não comentasse “a política interna de outros países”, Bolsonaro criticou abertamente a Argentina, que em dezembro aprovou via Congresso a legalização do aborto no país.

Araújo, que assim como Bolsonaro insinuou ter havido fraude das eleições americanas, disse então que “tem tudo para ser uma boa relação com os EUA”, agora presididos por Joe Biden.

“Temos interesses na segurança, na promoção da democracia aqui na América do Sul, econômico, trabalhar juntos no meio ambiente. Por que não?”, afirmou. “Assinamos um memorando de cooperação ambiental em novembro, esperamos manter.”

Para o chanceler, “o Brasil tem que ser visto por aquilo que nós somos, e não pelas distorções que saem infelizmente em grande parte da mídia”.

Criticado mundialmente pela alta dos incêndios florestais e do desmatamento na Amazônia em seu governo, Bolsonaro, então, disse: “Fogo pega no mundo todo, inclusive na Califórnia”.

Na campanha eleitoral, Biden ameaçou retaliar o Brasil caso os índices de desmatamento na Amazônia não melhorassem. Bolsonaro respondeu insinuando a possibilidade de entrar em guerra com os EUA: “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”.
Na transmissão ontem, o presidente disse também que as Forças Armadas jamais aceitariam “o convite de uma autoridade de plantão” para “enviesar para um caminho diferente da liberdade”. Ele fez a afirmação quando se referia à situação da Venezuela, que classificou como uma ditadura.

“Um grande pilar da nossa democracia são as nossas Forças Armadas”, disse Bolsonaro. “As Forças Armadas jamais aceitariam o convite de uma autoridade de plantão, no caso um presidente da República, de enviesar para um caminho diferente da liberdade.”

A fala de Bolsonaro ocorre depois de seguidos pronunciamentos dele que foram interpretados como uma ameaça ou um convite velado a que os militares aderissem ao golpismo.

Na segunda-feira, ele disse que “quem decide se o povo vai viver em uma democracia ou ditadura são as suas Força Armadas”.

Bolsonaro disse também que pretende fazer a reforma tributária neste ano. “Vamos fazer a reforma tributária no corrente ano. Não podemos ter majoração da carga tributária. [Se for para isso,] deixa como está", disse. “O objetivo é simplificar os impostos. As empresas gastam muito tempo, muito dinheiro com isso.”
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País tem duplo desafio externo

César Felício

22/01/2021

 


Relações com novo governo dos EUA e normalização do diálogo com a China são os desafios externos urgentes de Bolsonaro
Depois de mais de dois anos de governo, agora sim o presidente Jair Bolsonaro corre um risco no setor externo. O governo brasileiro vive o desafio de desenvolver uma relação de Estado - institucional, e não política - com os Estados Unidos e simultaneamente retirar o diálogo com a China da temperatura glacial que se encontra até agora.

A falta de habilidade para lidar com os dois maiores parceiros econômicos do País, algo que não pode ser descartado quando a responsabilidade do problema está sobre os ombros de Ernesto Araújo, pode comprometer a recuperação econômica, para ficar apenas no nível mais imediato das consequências.
O governo brasileiro se movimenta. A mudança de tom é nítida. Houve muitas mãos na tessitura da carta do presidente Jair Bolsonaro ao americano Joe Biden, divulgada anteontem. Bolsonaro fala de compromissos dentro do Acordo de Paris, desenvolvimento sustentável e proteção da Amazônia. Não se percebe, exceto por uma menção vaga a uma instrumentalização que estaria acontecendo em organismos multilaterais, o Bolsonaro que prega contra a “cristofobia” e contra o Foro de São Paulo.

O professor de relações internacionais da FGV de São Paulo Oliver Stuenkel vê muita identidade do teor da mensagem divulgada com manifestações recentes do embaixador americano no Brasil, Todd Chapman.

O ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos Rubens Barbosa pensa que ali há um pouco de Ernesto Araújo, mas muito da diplomacia tradicional do Itamaraty e talvez dos quadros militares do governo federal.

No caso da China, o passivo gerado pela polifonia que existe no governo é muito grande. Como no Brasil a política externa se tornou um tema de política interna, foram muitos os coristas de Bolsonaro que falaram contra a China. E continuam falando. Nesta relação bilateral ajudaria o silêncio da plateia e dos atores secundários e o envolvimento maior do próprio presidente.
O especialista em China Marcos Cordeiro Pires, professor de ciências políticas da Unesp de Marília (SP), lembra que Bolsonaro tomou a iniciativa de ligar para Xi Jinping em março, quando houve a afronta do então ministro da Educação Abraham Weintraub aos chineses. Ajudaria uma mensagem agora de que o Brasil não excluirá a Huawei da competição pelo 5G.

O momento com os Estados Unidos é particularmente delicado porque o conflito interno do País está longe de ser resolvido com a saída de Donald Trump da Casa Branca. Para Stuenkel, Trump não sai de cena totalmente, seus 75 milhões de votos mandaram uma mensagem para o Partido Republicano endurecer a oposição contra o democrata Biden e o risco político dos Estados Unidos continua elevado.

“O trabalho de tirar a legitimidade de um processo eleitoral começou em 2016 e não se reverte em uma tarde. É um clima inédito desde a guerra civil”, afirma Stuenkel.

Para o professor da FGV, o discurso de Biden na quinta transpareceu essa preocupação com a fragilidade de seu quadro interno. Isso faz com que se ressalte a importância de temas como democracia, liberdade e direitos humanos na agenda da Casa Branca. Qualquer aproximação de Bolsonaro com Trump, qualquer lembrança do vínculo do presidente brasileiro com o ex-mandatário americano pode ser vista como ingerência em assuntos políticos internos dos Estados Unidos.

O encontro do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) com Ivanka Trump, filha do ex-presidente americano, na véspera da invasão do Capitólio por extremistas, não ajudou. “Se, por suposição, alguém ligado a Bolsonaro visitasse Trump em Mar-a-Lago [residência de Trump na Flórida] agora, seria simplesmente uma catástrofe”, exemplifica.

Tão ou mais importante que a incômoda relação política entre Bolsonaro e Trump é a questão ambiental. Para Rubens Barbosa, o governo brasileiro terá o ano de 2021 para concretizar os compromissos na área ambiental que assumiu na correspondência divulgada na quarta-feira.
Ele observa que a porta-voz de Biden, Jen Psaki, estabeleceu ao falar com a imprensa que não há datas para conversas com o Brasil. O que sugere que, além do Brasil não ser uma prioridade no momento, o governo americano espera por algum trabalho a ser feito. “O Brasil precisa apresentar resultados, não adianta enrolar”, concluiu o diplomata.